Especial

José Sarney celebra 90 anos de vida marcada por grandes momentos

Escritor e político maranhense é homenageado por admiradores, amigos e críticos literários em seu aniversário

Sebastião Moreira Duarte

Atualizada em 11/10/2022 às 12h20
José Sarney celebra 90 anos de vida
José Sarney celebra 90 anos de vida (josé sarney)

(O texto abaixo foi escrito em 2010, como saudação a José Sarney, em nome da Academia Maranhense de Letras, por delegação de seu presidente, Milson Coutinho. Era a comemoração do octogésimo aniversário natalício de Sarney e dos 58 anos de seu ingresso na Casa de que é ele hoje o Decano. Já agora, na celebração dos 90 anos do Homenageado, parece justo reconhecer que o tempo chancelou mais e maiores razões aos argumentos que o autor apresentava naquela ocasião).

PEÇO licença ao Maranhão para falar do mais ilustre de seus filhos. Peço licença ao Brasil para falar daquele que tem sido a catálise viva de nossa convivência democrática. Peço licença ao mundo para falar de um predestinado.

“Predestinado – se devo ser claro desde o início – é aquele que, podendo ser primeiro ou último como qualquer mortal, não foi feito jamais para ser segundo.

Não se sabe como nasce um predestinado, assim como se ignora a origem do mundo. O predestinado irrompe das forças do universo, como o trovão, o tufão, o vulcão. É um fenômeno da natureza, antes de ser uma figura da História. A História, no entanto, lhe pertence desde o momento primordial, como um objeto caseiro, um jogo de estimação, um livro de páginas abertas, no qual ele há de escrever o próprio nome tão grande quanto prescrito pelos deuses invisíveis.

O predestinado chega antes, instala-se para ficar, fica para permanecer. O tear do tempo é a sua casa, e os fios das horas lhe descem pelas mãos sem que ele mostre sequer a ponta dos dedos. Manobrando as rédeas do presente, alimenta-se de pão venturo, feito o Guesa sousandradino. Com frequência, sucede de estar onde não está, e muitas vezes o vemos onde ele não se encontra. Ele tem o dom da ubiquidade, como os profetas bíblicos. A sua ontologia é ser transtemporal. Vê-lo em sua passagem é um recado de sobreaviso, pois, como na Receita de Vinicius, se fecharmos os olhos, ele não estará mais presente.

Porém, é preciso levar em conta que os predestinados irrompem no mundo para serem alvo de contradição, tanto quanto os profetas bíblicos. O comum dos viventes diviniza-os por todos os flancos dos apetites humanos: uns adoram-nos como a deuses benignos, outros satanizam-nos como a entidades perversas, onipotentes entidades na exata proporção em que onipotentemente perversas, sendo não mais que esta a verdade sólida e serena: indispensáveis o quanto se façam, os predestinados não se alistam mais que no plano catálogo dos seres humanos. Apenas acontece que foram talhados para andar à frente, como os condutores de povos e os guias de cegos. Nada agrada mais aos povos que ser levados pelo caminho certo: a frase é de Marco Túlio Cícero. Nada incomoda mais a um cego que os olhos de seu guia: a frase é minha, síntese de velha sabedoria nordestina, e bem poderia compor o repertório de um avô chamado Assuero Ferreira.

E esse é o fardo que pesa sobre os ombros dos predestinados: a eles, tanto quanto às personagens dos cantos épicos, reserva-se o papel não apenas de fundadores ou pioneiros, mas também o de vítimas expiatórias. Tal é o preço de sua perpetuidade para a História, a razão secreta de seu atendimento à Voz que os chamou. Eles pagam por todos. E todos se reconhecem seus devedores, mesmo que só o murmurem à própria sombra, ou quando só mostrem o rosto no brilho escuso do punhal de Brutus.

Falta dizer que, não sendo possível explicar um predestinado, devemos estar atentos ao nome que trazem e, não raro, à transnominação a que se obrigam por obediência à profecia que vêm cumprir nesta primeira margem da existência. Espalhados entre os mais diversos perfis, nos vários quadrantes do Planeta, e repartidos pelas mais diferentes fainas da laboração humana, eles serão Alexandre, César ou Napoleão; Galileu, Newton ou Einstein; Agostinho de Hipona, Francisco de Assis ou Inácio de Loiola; Da Vinci, Colombo ou Santos Dumont; Dante, Cervantes ou Machado de Assis; Bach, Mozart ou Villa-Lobos; Thomas Jefferson ou José Bonifácio; Ben Gurion ou Anuar Sadat; Kennedy, Juscelino, João XXIII, Gandhi, Luther King, Hélder Câmara, Menininha do Gantois, Teresa de Calcutá. Mais que o de qualquer outro, o nome do predestinado vigora como um augúrio: nomen est omen – diziam os antigos. Alexandre repreende a um soldado seu homônimo, mas covarde: “Torna-te bravo, ou não te chamarás mais Alexandre!” E quando o nome já não explicite, de princípio, o roteiro a cumprir, opera-se a transmutação: Ascânio será Iulo; Simão será Kefas, Pedro, Pedra; Saulo – eu direi Saul, para marcar maior distância na tradução nominal – Saul será Paulo; Otávio será Augusto; e, deste outro lado dos séculos e dos oceanos, Manuel Beckman será O Bequimão; Joaquim José será O Tiradentes; Antônio Francisco será O Aleijadinho; Manuel dos Anjos será O Balaio; Joaquim de Sousa Andrade será Sousândrade; Alfredo Viana será Pixinguinha, Edson será Pelé; Mané será Garrincha; José será Sarney.

Sublinhemos, por fim, que os predestinados dispensam recintos estridentes para desembarcarem no meio humano. Sobre o lugar de origem de muitos deles, poder-se-ia repetir a perplexidade de Natanael, quando seu irmão Filipe lhe deu parte de haver encontrado o Salvador: “Alguma coisa boa pode vir de Nazaré?” (João, I, 46). É que, filhos da simbiose da Sorte com o Sortilégio, os predestinados serão os pais da Surpresa.

Pois foi por surpresas da predestinação, que, nos idos de 1930, houve uma quinta-feira, 24 de abril. Na centenária freguesia fundada pelo capitão-mor Inácio José Pinheiro, na Baixada Maranhense, ninguém poderia adivinhar que aquele dia situava-se a exatos seis meses da sexta-feira, 24 de outubro, em que, no Rio de Janeiro, se daria a deposição de Washington Luís. O mundo dobrava esquina para mergulhar no mais sangrento rio de sangue que os olhos humanos jamais contemplaram. No Brasil, despontava um novo período histórico. Enquanto isso, entre nós, o Maranhão dormia, “dopado de inércia, descendo escada abaixo a saudade de uma longínqua Atenas Brasileira”. (Joaquim Itapary, na orelha do livro de José Sarney, Memorial dos 80 anos). Alguém poderia dizer em que recanto escondido nasceria o Homem que nos traria o amanhã? Haveria quem imaginasse que, àquelas horas, às margens do rio Pericumã, o Tempo partejava um obstetra do futuro, chamado José?

José: o nome é já uma convocação, uma promessa, um vaticínio: José do Egito, despenseiro dos paióis régios para os irmãos famintos; José carpinteiro, ecônomo da Salvação; José de Arimateia, guardador do corpo morto de Deus para a aurora da Ressurreição.

José iniciou-se no aprendizado minucioso da terra, das tradições, dos jeitos e das gentes maranhenses. Seu curso de vida se fez na convergência das Letras e da Política, dois caminhos incompossíveis, segundo a sentença de juízes os mais sisudos: Josué Montello, repetindo Stendhal, afirmava que misturar Política e Literatura correspondia a disparar um tiro de pistola num concerto sinfônico. Decerto, no entanto, José terá ouvido O guarani, de Carlos Gomes, no qual o tiro é instrumento do concerto. Poucos, pouquíssimos, perfizeram a mesma carreira anfíbia e chegaram à primeira magistratura de seu país: Domingos Sarmiento, na Argentina, Rômulo Gallegos, na Venezuela; Vaclav Hável, na Tchecoslováquia. Nenhum alcançou timbres de ressonância tão ampla, nos vastos descampados da invenção literária e da inventividade política. Josué Montello, recebendo-o na Academia Brasileira de Letras, retificará o juízo anterior: o seu conterrâneo, “como político, não é literato; como homem de letras, não é político”.

Mas “os deuses vendem quando dão” – lembra Fernando Pessoa. Para que fique provado que não é gratuito nenhum convite à predestinação, registro dois fatos:

– desde cedo nos anos, José destacava-se dos jovens de seu tempo, e até dos irmãos, no processo lento e laborioso de familiaridade com os livros. A confidência me foi feita por sua prima D. Teresinha Leite, em Pinheiro. Ela me assegurou: poucos estudantes evidenciavam tamanho senso de disciplina e perseverança na vida intelectual;

– no Liceu Maranhense – o depoimento foi dado em público por José Bento Neves – os estudantes, despertados por mestres de escol, tomavam consciência do atraso quase invencível em que estava sepultada a sonolenta Província. “Vamos construir um novo Maranhão” – eles firmaram o propósito – e José, que ia se fazendo Sarney, foi apontado como o líder de uma nova geração de maranhenses dispostos a desenterrar a “caveira de burro” da velha terra, na qual o passatempo mais prazeroso cifrava-se nos famigerados seis verbos em m enumerados pelo Padre Vieira: murmurar, motejar, maldizer, malsinar, mexericar, e, sobretudo, mentir. Infelizmente – a confissão é, outra vez, de José Bento Neves – aqueles adolescentes não levavam na pupila a dimensão do próprio voo, cuja realização lhes requeria concentrado estudo da realidade em que viviam. Faltou cumprir-se o Maranhão, como para Fernando Pessoa falta cumprir-se Portugal.

Eu posso dizer, porém, porque fui testemunha e beneficiário, o que significou a revoada de esperanças que sacudiu o Maranhão, quando aqueles moços de 1945/46 passaram a governar o Estado duas décadas depois. José, já então em sua plenitude de Sarney, modelou-se na missão de outro predestinado: Sarney foi o nosso Juscelino. Seu cometimento não seria construir uma capital para o Estado, mas construir o Estado todo inteiro, maior que a quase totalidade dos países da Europa Ocidental. E é certo que não seria possível fazer tudo, onde tudo estava por fazer. Mas eu vi – meninos, eu vi! – o Maranhão possuído de um otimismo que nunca antes experimentara em sua História. Inaugurei estradas antes de Sarney, andei sobre o asfalto numa terra onde o único asfalto existente era o que saía de frente das Indústrias Jesus e terminava à entrada da Penitenciária de Pedrinhas.

Naqueles tempos, entretanto, Sarney, o predestinado, ainda não tinha – isso também é próprio dos eleitos – pleno conhecimento da missão que lhe cabia enfrentar nos anos a vir. Vejamos o que ele diz de si mesmo, às vésperas de assumir o Governo do Maranhão, após dez anos no Congresso Nacional: “Aqui confesso, com absoluta certeza, que nunca consegui romper esta barreira telúrica que me fez sempre um homem do Maranhão, sem jamais ter conseguido fazer política nacional. E todas as minhas tentativas neste setor, considero, se não frustradas, pelo menos de uma mediocridade desanimadora”.

Precisaríamos repassar o seu currículo posterior para fazermos negação cabal de tudo o que aqui ele confessa “com absoluta certeza”? O mundo todo me ajuda a refutar Sarney, o Presidente da República que o Maranhão deu ao Brasil. Mílson Coutinho documenta, em seu livro hoje lançado, a certeza de que Sarney desconhecia os passos de sua predestinação, até ascender à epifania daquela cordilheira de nossa História, quando ele pôde garantir – agora, sim – com absoluta certeza: “Deus não me trouxe de tão longe para ser o síndico de uma massa falida”.

Não esqueçamos, porém, o signo de contradição, que, já agora, não há: a do político e do escritor.

Walt Whitman, vagando pelas ruas de Nova York ao tempo em que lá se enclausurava o gênio incandescido de Sousândrade, proclamava aos seus compatriotas que os Estados Unidos precisavam mais de poetas que de capitalistas, pois somente a poesia avaliza a eternidade do homem, e fora da poesia não há salvação.

Ultrapassando a barreira da malevolência, da pirraça, da cegueira – em suma, da ignorância, tanto maior quanto mais propositalmente ignorante – da parte dos que lhe fazem ignorante oposição – é dever nosso, de inteligência e decência, aclamarmos o homem de letras, o poeta e o ficcionista que é José Sarney. Já basta o quanto a crítica estrangeira nos tem dado de lição e repreensão, ensinando-nos a leitura correta de uma obra cujo vigor e originalidade a desprovisão de conceitos e os preconceitos da ideologia não têm, em geral, sabido esquadrinhar.

Como o que faço é uma saudação e não um balanço compreensivo, permitam-me o repasse sucinto de seus títulos principais:

Sarney é, antes de tudo, um poeta, como o tem que ser, em prosa ou em verso, qualquer criador moderno de literatura. A sua produção específica em verso apresenta três características, indispensáveis em todo poeta, mas tornadas suas, porque elevadas a um nível de exigência e rigor só encontráveis naqueles que têm maturada consciência da própria arte: musicalidade e condensação expressiva, domínio e adequação do ritmo, forte impregnação local. Essa última nota oferece dificuldades de assimilação por parte de quem não é maranhense. Vale para Sarney o que disse Mário de Andrade a respeito de Ascenso Ferreira: a sua poesia, de alto nível, é poesia de Pernambuco. Será apreciada, até o ponto em que estejam em vigência e se alastrem pelo mundo os valores da cultura pernambucana. No caso de Sarney, passa despercebido o melhor de sua força poética a quem não saiba do Maranhão, suas palavras e seus sotaques. Faço um exemplo só, o mais breve e talvez o mais eloquente, que é o da Homilia do Juízo Final, um dos mais fortes poemas já escritos em português: quem não sabe o que é juçara, e como é macerada até transubstanciar-se em sangue-alimento-para-o-povo, não pode fazer ideia do sentido de abnegação e pungência que a palavra destila sobre o poema. Nem menciono o título Os maribondos de fogo, metáfora perfeita, de perfeita estampa regional, para significar o quanto a imposição da poesia nos ferroa e aferroa.

O regionalismo assinala a árvore genealógica a que se filia a literatura de José Sarney. Por ele, Sarney se insere no grande veio em que se encontram os nomes de Simões Lopes Neto, Afonso Arinos, os escritores do Nordeste dos 30, e Guimarães Rosa e Mário Palmério, depois. Mas o seu regionalismo – e aqui eu menciono a prosa-poesia de Norte das águas – apresenta, desde logo, o próprio sinete diferenciador. Os traços de regionalidade são, já nesse livro primigênio, apenas o pretexto, a superfície, o barro ou a argamassa da construção. A Sarney interessa o estofo da intriga e a tecedura arquitetural, através do que ele investiga e registra as querências – essa, uma palavra predileta do Autor – e dolências, as ações e paixões da alma humana e suas circunstâncias. Observe-se como os seus racontos, telúricos até a medula, são inegáveis transcriações do real maranhense, mas oferecem alguma resistência a se inscreverem nos chãos do Maranhão real, de sua geografia e de seu ambiente humano. Para penetrar-se na economia de sua composição, veja-se como espaço e tempo se esgarçam indistinguíveis nos relatos do Norte das águas, dificultando, se não mesmo impossibilitando, sua identificação com dados e fatos do universo vivido. A essa desrealização servem os nomes próprios – Flordasina, Frasmamédia, Merícia, Padecência, Olegantino, Vitofurno, para não falar dos Bonsdias, Boastardes, Boasnoites, que fazem lembrar José Arcádio e Aureliano Buendía, de García Márquez, mas os antecedem, pois, como me assegurou o poeta José Chagas, os contos de Norte das águas, que deveria intitular-se Norte das éguas, foram escritos quando Sarney ainda frequentava as redações de jornal em São Luís. Esses nomes não têm registro cartorial, para terem ressonâncias líricas indefiníveis e nos transportarem a uma região que não sabemos qual e que pode ser qualquer uma. Trata-se de um regionalismo elaborado noutro estalão, que não cede maior prestígio a cenários como aqueles em que se movimentam Lúcio e Soledade, José Paulino, Mestre Amaro, o Moleque Ricardo, Paulo Honório, Fabiano e Sinha Vitória – um regionalismo metafísico – eis tudo – um regionalismo já universalizado – eis o oxímoro – universalizado de dentro mesmo de sua própria concepção, algo que nos remete de volta às novelas de cavalaria, substrato da narrativa oral nordestina, ficções feitas pelo simples compromisso de contar, mas que, ao mesmo tempo e com igual prazer, nos obrigam a refletir que a essência humana se libra no sopro da palavra, embora tudo se satisfaça na simulação do puro divertimento.

Claro deveria estar que a novidade desse regionalismo não se conteria nem se contentaria com a narrativa curta. A obra de largo curso estaria por vir. E veio. O dono do mar e Saraminda estão aí para serem lidos como inventos literários, e não como manifestos políticos.

Lembro que, em 1971, quando Josué Montello lançava, na praça pública, à entrada da Ponte do São Francisco, o seu Cais da Sagração, eu lhe perguntei por que, num país como o nosso, nascido das aventuras marítimas e tão largamente banhado pelas águas do mar, era tão escassa a literatura de temas e personagens marinhos. Ademais, o mar, suas águas, suas ondas, sua zoologia, constituem topoi dos mais incidentes da literatura universal.

Josué concordou comigo, mencionou o Mar morto, de Jorge Amado, e sorriu satisfeito por ver que a sua obra preenchia a lacuna.

Mas foi na esteira do regionalismo metafísico de José Sarney que o mar entrou em definitivo como tema das letras nacionais.

Sabe-se, todavia, que a arte da ficção literária não se faz somente por se encontrar um tema. O artista da palavra há de demarcar um território, dar-lhe o sangue e a pulsação da vida, e emprestar-lhe os ritmos inconfundíveis de seu próprio idioma, o seu estilo. Foi o que fez Sarney, ao inventar Antão Cristório e sua troupe. O Maranhão se deve muito ao mar, desde os naufrágios de seus primeiros donatários em nossos boqueirões e areias movediças. Aqui está a segunda maior costa marítima brasileira, e dezenas de milhares de maranhenses tiram do mar a sua razão de viver. Sarney autenticou a dignidade do reconhecimento artístico a essa gente, ordenando-lhe percorrer mares novos mundo afora.

Certa vez, ao final de uma conferência sua em uma de nossas instituições acadêmicas, eu indaguei ao Autor de O dono do mar como se deu que ele teve a felicidade de enxergar o que não se havia visto ainda propriamente no Brasil: a literatura do realismo mágico, tão alheia ao “realismo francês”, padrão século XIX, lastro fundamental de formação da nossa cultura escrita, distinta da matriz saxônica, gótica, nevoenta, mais propícia aos mistérios do fantástico, gênero abundante, por exemplo, na literatura argentina. Sarney me revelou um segredo, a chave de leitura de sua obra recém-lançada e, no conjunto, de todo a sua contextura ficcional: um dia ele adquirira, da velha Livraria Ramos d’Almeida, todo o rodapé de uma prateleira onde se escondia um encalhe de dezenas de volumes da Coleção Austral, espanhola, com numerosos títulos de romancistas hispano-americanos. Leu, anotando, aqueles livros, um a um, e ganhou familiaridade com Miguel Ángel Asturias, Arturo Uslar Pietri, Juan Rulfo, Alejo Carpentier. Estava explicada para mim até a obra que viria, Saraminda.

Saraminda é, até mais que O dono do mar, um caso único nas letras deste país. Li-a, à primeira vez, de um só fôlego, tomado pelo fascínio de sua leitura desde as palavras iniciais: “Caiena é triste”. Dei-me por certificado: quem por essa forma começa um romance, usando o verbo ser no modo indicativo, afirmativo, presente, está de posse de sua verdade e tem a mais absoluta segurança do que está dizendo, a autoridade, o poder de convencimento capaz de aberturar o leitor para soltá-lo somente quando chegar ao ponto final. Um mestre, com que é preciso aprender”.

Mestre José, Poeta, Ficcionista Sarney, Presidente José Sarney, a quem, no recesso da Academia Maranhense de Letras, chamamos orgulhosamente de confrade:

Confrade Sarney, eu pensei em arrematar esta saudação com os versos de um poeta latino, intraduzíveis, a rigor, pela sonoridade encantadora de seu verbo. Tenho quase certeza que o Padre Newton Pereira, seu professor de Latim no Liceu Maranhense, o levou à leitura desta saudação natalícia de Tibulo. Aceite-a, proferida por nós, no festejo jubiloso de seus oitenta anos:

At tu, Natalis, multos celebrande per annos,

Candidior semper candidiorque veni.

[Que este aniversário se celebre por anos e mais anos,

E se repita com sempre maior fulgor e candor].

Mas, Presidente Sarney, a mão que escreve caminha por si mesma e a si mesma não pode negar. Se, como diz a Sapiência bíblica, há um tempo para tudo, é este o momento de reescrevermos, nós, os seus leitores, o seu poema mais famoso, a fim de o restituirmos corrigido e atualizado ao seu Autor:

HOMILIA DO JUÍZO FINAL

Tenho um encontro com Deus:

– José!

onde está o balde de juçaras que deixei em tuas mãos?

– Está aqui nesta miríade de estrelas, que recolhi

e distribuo entre irmãos.

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