Literatura

A duquesa vale uma missa

Ceres Costa Fernandes

Atualizada em 11/10/2022 às 12h20
Capa da primeira edição de "A duquesa vale uma missa"
Capa da primeira edição de "A duquesa vale uma missa" (a duquesa vale uma missa)

Após esquadrinhar os segredos dos mares e partilhar dos saberes de pescadores, donos de universo onírico próprio, magistralmente recriado em O dono do mar; mergulhar fundo no garimpo e na floresta amazônica, no enleio de Saraminda, a dos seios dourados, mulher-símbolo do desejo e da ambição do ouro, José Sarney nos brinda com a construção de mais um romance. Um romance urbano: A duquesa vale uma missa. A riqueza imaginativa do autor vai buscar na cidade, seus conflitos do cotidiano e sua pressa, o novo espaço de criação. .

A ação ocorre no Rio de Janeiro e em São Paulo, e, sem prejuízo, poderia passar-se em qualquer cidade. Mas a natureza confessional do romance, o desenrolar no plano do irreal fazem o espaço interior do imaginário de Leonardo, o narrador, o lugar privilegiado do acontecer. A demarcação das fronteiras cronológicas da narrativa comparece, considerando-se que o narrador situa os acontecimentos do universo fictício - presentes ou convocados pela memória -, entrelaçados com eventos e personalidades da História..

O fio condutor que penetra em todos os escaninhos da narrativa e tece a trama é a obsessão amorosa do protagonista pela Duquesa de Villars, cortesã da França de Henrique IV, a belíssima Julienne, imortalizada em um quadro famoso da escola de Fontainebleau, na cena do banho com sua irmã, a concubina do rei, Gabrielle D´Estrées. Sobre a intensidade dessa paixão, diz Leonardo: “ – Ah, Duquesa, se o rei Henrique jurou crença num deus em que ele não acreditava pelo Reino da França, quantas missas, mortes e vidas eu dei pela eternidade de, sendo dois, ficarmos um, dissolvidos um no outro, pelo milagre do amor”?

A trajetória da tela famosa é uma história menor dentro da narrativa principal, mas é ela que dá o mote e o fecho ao romance. A tela, expropriada de algum potentado czarista, vem da União Soviética para o Brasil, para ser vendida e ajudar a financiar a Intentona Comunista de 1935. O comprador da obra é o pai do protagonista, um bem sucedido industrial simpatizante do Partido Comunista, que, ao falecer, a deixa para os filhos. Em decorrência da origem de sua compra, a tela permanece discretamente resguardada na biblioteca da mansão, por mais de cinqüenta anos, sabida apenas da família. E é lá, no recôndito silencioso dos livros, que o adolescente Leonardo se apaixona por Julienne e se crê correspondido.

A trama dessa paixão inusitada é muito bem urdida, depois de atados os nós dos múltiplos fios de que a compõem: amores presentes, alucinações, dúvidas, ciúmes, a teia se completa, e o leitor cai prazerosamente na armadilha do texto. Movidos pela “suspensão da descrença”, celebramos o pacto de leitura com o narrador e mergulhamos no fantástico-verossímil do amor de um homem do tempo presente por um retrato de mulher pintado no século dezesseis. Guiados pelo imaginário de Leonardo, vivenciamos as suas angústias, desejos, ciúmes de rivais mortos há mais de quatrocentos anos, enfim, a obsessão pela sua Duquesa. .

A elaboração do personagem Leonardo, narrador confessional, é um processo de autoconstrução. O conhecimento de sua vida e personalidade é limitado por seu testemunho e memória. De forma fraturada, acompanhando a sua visão dos acontecimentos e os volteios de seu pensamento, é que passamos a conhecê-lo. Pertencem a ele a apresentação e o julgamento dos fatos. Devemos acreditá-lo, pois os planos da realidade e os da fantasia/alucinação se superpõem, e não sabemos onde começa um e acaba o outro. O ritmo da narrativa, lento no seu início, vai se intensificando, enredando mais e mais nosso interesse, prisioneiro da trama até o seu clímax e desenlace.

. Julienne, a Duquesa de Villars, é apenas um personagem, e como tal, diria Roland Barthes, “um ser de papel” ou, se quiserem, um ser de tintas e tela. Mas a sua realidade é tamanha que chega a ser possível, ouvir sua voz encantatória, como um “canto de baleia no cio”, sentir o aveludado de sua pele e, sobretudo, partilhar com emoção de seus amores e desventuras. De seu fascínio e beleza, não duvido nada que fiquem prisioneiros outros tantos Leonardos, após a leitura desta obra surpreendente.

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