A última edição impressa de O Estado envolve uma avalanche de sentimentos. Surpresa não está entre eles. Nostalgia, tristeza, saudade antecipada…, certamente. Surpresa não.
O número derradeiro de um periódico que narrou – sob a égide do bom jornalismo – 62 anos de história de um estado, um país, do mundo não deve soar tão estranho como possa parecer. Em uma realidade cada vez mais digital, não cabe o espanto à notícia de que um jornal vai imprimir seu “adeus” às letras e imagens dispostas em grandes folhas de papel. Afinal, notícias, bem como a vida da gente, “ajustam-se” hoje “perfeitamente” à palma da mão.
Pois bem, o dia chegou. Temos à mão a última edição impressa de O Estado. E contra fatos não há argumentos, sacramenta a velha (e sempre atual) máxima do jornalismo.
Ante a realidade irremediável, confesso ser quase impossível resistir à tentação de dar uma bela olhada pelo retrovisor da história. Lembrei-me, claro, de minha primeira vez na Redação. E de outros tantos momentos inesquecíveis vividos em O Estado. Todavia, opto por poupar os leitores de minhas recordações.
Também não vou citar nomes de colegas que diretamente influenciaram na minha educação como jornalista. Desculpem-me os parceiros de jornada, mas a lista seria por demais extensa e, certamente, cometeria omissões imperdoáveis. Prefiro agora recorrer à cena de um filme que me veio à memória – a arte sempre insiste em imitar a vida, e vice-versa.
No divertido “A vida secreta de Walter Mitty” (The Secret Life of Walter Mitty), temos a história de Walter (Ben Stiller). Ele é responsável pelo departamento de revelação de fotografias da tradicional revista Life e se vê diante da fatídica missão de preparar a foto que vai ilustrar a capa da última edição impressa do semanário. Até aí, nada além de uma infeliz tarefa, não fosse o imprevisível.
Ao receber um pacote com negativos do enigmático e premiado fotógrafo Sean O'Connell (Sean Penn), Walter percebe que está faltando uma foto, justamente a escolhida, aquela que entraria para a história por estampar a última capa da Life. Pressionado a cumprir o seu dever, ele vai iniciar uma odisseia em busca de O’Connell – cuja personalidade assemelha-se a de um eremita – na esperança de obter uma cópia da preciosa fotografia.
A jornada, obviamente, é cheia de (auto)descobertas para Walter. Atenho-me, contudo, àquele que considero o instante mais icônico do filme:
Diante de uma cena raríssima de se ver, em um lugar inóspito do planeta Terra (percebam que estou sendo cuidadoso para não dar spoiler), o fotógrafo hesita em captar o momento com sua poderosa máquina. Um simples clic e a imagem estaria congelada, pronta para render mais um prêmio à carreira de Sean. Em vez disso, ele apenas observa a cena rara, que dura apenas poucos segundos. Segue o diálogo da cena:
(Walter, impaciente) – Quando você vai tirar a foto?
(Sean) – Às vezes não tiro. Se gosto de um momento, pessoalmente, não quero ser distraído pela câmera. Só quero ficar nele.
(Walter) – Ficar nele?!
(Sean) – É, bem no meio.
Walter compreendera que, em vez de fotografar uma cena rara, às vezes Sean preferia agasalhar na memória aquele momento, tornando-se parte dele.
Hoje, palavras são para mim o que a máquina fotográfica representa na cena de “A vida secreta de Walter Mitty”. Usá-las talvez fosse como deixar de apenas apreciar o momento, “ficar nele, bem no meio”.
Este mês, completei sete anos à frente da Redação de O Estado. Parece que foi ontem. Vão-se, ao todo, mais de 20 anos da minha vida dedicados a este matutino. Não ousaria fazer contas agora - sempre fui péssimo com números -, mas arriscaria dizer que muitas horas de cada dia foram (bem) vividas aqui.
Decido também não tentar descrever o pacote de sentimentos que carrego nos braços agora. Para palavras certas, existem os poetas – quanta inveja eu tenho deles!
Assim sendo, opto por substituir o ponto final dessa história por um trecho do poema “Clichê sem imagem” (1972), do genial Pergentino Holanda:
Há um silêncio de gente nas velhas oficinas
de um jornal que eu construí na mente:
nas máquinas de sombra falta um barulho
para compor no chumbo a minha lamentação
Há uma aparência de inútil nas velhas oficinas
de um jornal que eu construí na mente:
um antigo clichê não reproduz a imagem
da última fotografia que eu colhi na noite.
Há uma presença única nas velhas oficinas
de um jornal que eu construí na mente:
um poeta sonhando na aurora de hoje
para ver o seu nome na edição do tempo.
Clóvis Cabalau, jornalista e diretor de O Estado
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