Artigo

Velhas tardes de domingo

Atualizada em 11/10/2022 às 12h21

“O passado não é aquilo que passa, é aquilo que fica do que passou.” Alceu Amoroso Lima, o Tristão de Athaíde (1893-1993), pensador carioca.

Segunda metade da década de 40, em Caxias. Todo domingo era sempre a mesma coisa: ainda pela manhã a ansiedade tomava conta daqueles jovens amantes das vesperais dos cinemas da cidade, Rex e Pax.

A energia elétrica chegaria a tempo de proporcionar o imenso prazer, que se renovava a cada final de semana, de ver, por exemplo, um filme com o William Boyd, (1895-1972), o Hopalong Cassidy, e mais uma sequência da série de westerns estrelada pelo cowboy Wild Bill Elliot (1904-1965)?

Naquela época dispunha-se de luz das seis horas da tarde até a meia-noite; um apito avisava o início e o fim da claridade. A velha usina e suas caldeiras a vapor não aguentavam o dia todo; seus operários procuravam fazer um esforço adicional nas tardes de domingo, para alegria dos adeptos da sétima arte.

Depois do almoço, lá pelas duas horas da tarde, lá íamos nós em direção à Usina, a fim de incentivarmos os operários já empenhados, desde o meio-dia, na alimentação das caldeiras, que precisavam de certo nível de pressão à custa de muita lenha e carvão. Essa operação levava tempo e podia fracassar, pois nem sempre os motores funcionavam na primeira tentativa de liberação dessa pressão a vapor.

E aí, se tal acontecesse, tudo tinha de começar de novo e a vesperal daquele dia certamente ficaria para o próximo domingo, e ninguém suportava mais esperar para ver o resultado da célebre frase “voltem na próxima semana”, exibida na semana anterior.

Para que os motores funcionassem da primeira vez, contudo, também valia a torcida: aqueles garotos vidrados em cinema ficavam postados literalmente na ‘boca’ da caldeira, quase que encarnados nos homens suarentos pelo esforço de cada vez mais lenha e carvão. E tome pressão, e todos de olho no seu medidor; quando começava a chiar, acusando nível suficiente, era hora de transferir essa pressão para as engrenagens do motor, que havia de gerar a tão esperada energia.

Na medida em que o vapor da caldeira ia sendo liberado, as correias começavam a deslizar e ir-e-vir pelas grandes rodas do motor, que dava seus primeiros sinais de vida e aos poucos ia acelerando seus movimentos, cada vez mais rápidos até que atingisse o nível adequado à geração da tão esperada luz.

Às vezes todo esse esforço era em vão e o motor não conseguia ‘pegar’, e o processo deveria ser repetido; mas quando tudo dava certo, as palmas e os gritos ensurdecedores daquela torcida ensandecida saudavam as lâmpadas que se acendiam, numa luminosidade cada vez mais forte.

A seguir, em desabalada carreira, depois daquela enorme conjugação positiva de pensamentos e ações, tomávamos o rumo do cinema, anunciando a boa nova pelo caminho: chegou a luz, chegou a luz!

Depois, já acomodados nas poltronas de madeira e, de preferência, próximos a um dos ventiladores, suados e exaustos, dali em diante estaríamos atentos à telinha mágica, para aplaudir a vesperal daquele domingo.

E assim que o prefixo musical começava a tocar, um famoso ‘dobrado’ dos tempos da Segunda Grande Guerra, e as luzes iam diminuindo de intensidade até se apagarem por completo, todos gritavam como se fossem participar do maior espetáculo da terra.

E, de fato, naquelas circunstâncias, era mesmo o maior espetáculo da terra.

Antônio Augusto Ribeiro Brandão

Economista, membro Honorário da ALL e da ACL, filiado à IWA e ao Movimento ELOS Literários

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