Punição

Crime organizado: rigor na punição à mulher é proporcional a ascensão

Quanto mais as mulheres sobem na hierarquia das facções, mais severas as punições se tornam para elas em caso de infrações; cabelos raspados, é traição

Nelson Melo / O Estado

Atualizada em 11/10/2022 às 12h22

[e-s001]Quando o assunto é crime organizado, geralmente, as pessoas associam logo aos homens. Isso é o resultado de um padrão social que não é inventado. Apesar dessa predominância masculina, um fenômeno intrigante está acontecendo na Região Metropolitana de São Luís, onde as mulheres estão assumindo posições de liderança dentro das facções criminosas. Como consequência, as punições nos chamados “tribunais do crime” se tornam mais rigorosas para elas.

O Estado ouviu um policial militar da Diretoria de Inteligência e Assuntos Estratégicos (DIAE), que já acompanhou diversos casos de “tribunais do crime” na Grande Ilha. Segundo essa fonte, de 2013, quando as duas primeiras facções criminosas do Maranhão se apresentaram para a sociedade, depois de saírem do presídio em direção aos bairros, até meados de 2017, as mulheres eram apenas companheiras dos faccionados. Nesse período, os criminosos as respeitavam pela percepção de que eram sexo frágil.

Também havia a ideia entre os faccionados de que a mulher poderia ser usada como “isca” para desafetos, segundo ressaltou o policial. Nesse sentido, as moças eram selecionadas para seduzirem integrantes do grupo rival em direção às “casinhas”, como são chamadas as emboscadas. Em uma das situações ocorridas em São Luís, uma organização criminosa utilizou Glacy Katreen dos Santos Pereira, a “Rapunzel”, para atrair alguns alvos no polo Coroadinho. Ela conseguiu isso em janeiro de 2018. Como resultado da cilada, um rapaz foi morto a tiros.

De acordo com o militar, essa percepção da mulher sobre si mesma e sobre sua condição na facção mudou a partir de 2017, na ilha, embora o processo tenha sido paulatino, como qualquer fenômeno social. “Antigamente, existia um lema no crime organizado de que a mulher era quase intocável. Por mais que errasse na comunidade, não poderia ser repreendida com severidade. Mas isso sofreu uma transformação. Hoje, elas já são mortas, dependendo da infração com relação ao estatuto”, comentou o policial da DIAE.

Para o militar, essa mudança aconteceu, principalmente, porque as mulheres foram se envolvendo mais com a facção, com ambição de ocupar cargos importantes, como “torres”, que são os líderes nas ruas, uma vez que, nos presídios, quem manda é a “Final”, o topo da hierarquia. “Antes, as mulheres ficavam só nos bastidores. O máximo que faziam, era tentar entrar com drogas e celulares nos presídios. Com o tempo, elas subiram nesses grupos. Antes, eram só companheiras, atualmente, comandam facção. Aí, isso foi pesando para elas. Vai chegar um momento em que o tratamento será equivalente ao dos homens”, explicou a fonte.

Punição às mulheres
Neste ano, já teve uma mulher executada em decorrência de “tribunal do crime” na Grande Ilha. A situação aconteceu na Maiobinha, em São José de Ribamar, no dia 4 de setembro. Josenila Silva Rodrigues era usuária de drogas e foi colocada no “banco dos réus” da facção por ter praticado furtos na comunidade. Os criminosos desferiram vários disparos de arma de fogo nela e também em seu companheiro, que escapou e foi levado ao hospital.

Josenila foi a única mulher morta em 2019, após ter sido “decretada” nesses julgamentos clandestinos, segundo dados da Superintendência Estadual de Homicídios e Proteção à Pessoa (SHPP). Neste ano, outra vítima feminina passou por um “tribunal do crime”, mas a punição foi um tiro na palma da mão, no Parque Vitória, em São José de Ribamar. De acordo com o policial militar ouvido por O Estado, ela foi punida por causa de drogas. Inclusive, os faccionados até gravaram o vídeo da cena.

Cabelos raspados
Além do tiro na mão ou na panturrilha, as mulheres também podem sofrer outra punição, que mexe diretamente com a vaidade: a raspagem dos cabelos. Esse tipo de situação é algo específico para o universo feminino no contexto do crime organizado. Ocorre, geralmente, nos casos de “ursagem”, termo citado no estatuto das facções como sinônimo de traição. O amante, na gíria dos bandidos, é chamado de “urso” ou “23” (número do urso no jogo do bicho).


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“Nenhuma facção aceita traição. Quando quem pratica é homem, ele pode até ser morto. Se for mulher, ela tem os cabelos raspados e, geralmente, é expulsa da comunidade”, explicou o policial. Em São Luís, em outubro de 2016, uma organização criminosa já extinta torturou uma jovem na Cidade Olímpica em um cativeiro, porque ela teria se relacionado amorosamente com Geovane Barros Moreno, o “Dudu”, embora namorasse Rony Kassio Chaves de Araújo.

O idealizador e líder daquela facção, Josué Santos da Silva, o “Gaspar”, alegou que “Dudu” violou o “Inciso IV” do estatuto da organização, que proibia que um “batizado” cobiçasse a mulher de outro integrante. “Dudu” foi executado depois de ser julgado. Já a jovem foi mantida em cárcere privado pelos faccionados durante alguns dias. Ela levou vários socos e pontapés. O delegado George Marques, da SHPP, disse que a vítima escapou do local, porque uma viatura da Polícia Militar passou na rua. Com o som do giroflex, os criminosos se assustaram e saíram correndo.

Nesse instante, ela conseguiu desamarrar os pés e as mãos e correu, mesmo com a saúde debilitada pelas agressões que sofreu. Os integrantes da facção fizeram gravações e bateram fotos da mulher sendo torturada. As imagens e os vídeos foram encontrados no celular de “Gaspar”, que hoje é líder de outra organização criminosa na Cidade Olímpica, conforme o delegado da SHPP relatou.

Sangue por sangue
Com o lema “sangue por sangue”, uma mulher se destacou na Camboa, em São Luís. Valdirene Pereira, mais conhecida como “Val”, presa em dezembro de 2018 pela Superintendência Estadual de Investigações Criminais (Seic), ocupa um cargo de liderança na facção que domina aquele bairro. A ascensão dela na organização aconteceu depois que seu marido, Daniel Almeida dos Santos, o “Danielzinho”, foi executado a tiros no dia 15 de dezembro de 2016, no Jardim Renascença, na capital, quando saía de uma audiência.

Em 2015, Valdirene havia sido capturada juntamente com Daniel Almeida, com trouxas de cocaína e um carro blindado. Em outra prisão, em dezembro de 2018, o delegado Gil Gonçalves, do Departamento de Combate ao Crime Organizado (DCCO) da Seic, comentou que “Val” estava lavando dinheiro do tráfico de drogas em imóveis e veículos. Em março do mesmo ano, ela comandou uma guerra urbana contra membros de outra facção na Camboa/Liberdade. O tiroteio foi intenso e deixou os moradores assustados.

Devido a esse confronto, mais de 100 policiais civis e militares se deslocaram à região, para tentar apaziguar a Camboa e prender “Val”. Até um helicóptero do Centro Tático Aéreo (CTA) participou da operação. Um faccionado foi preso com uma pistola ponto 40, que teria sido utilizada no tiroteio.

[e-s001]Ciladas de “Rapunzel”
Glacy Katreen dos Santos Pereira, a “Rapunzel”, foi presa na Vila Conceição, área do Coroadinho, na manhã do dia 10 de dezembro de 2018, pelo então Grupo de Serviço Avançado (GSA) do 1º Batalhão de Polícia Militar (BPM) e 10º Distrito Policial (DP), Bom Jesus. Dias antes, circulou nas redes sociais um vídeo no qual ela aparece agredindo outra mulher, que estava despida.

Os policiais apreenderam um revólver calibre 38, contendo três munições intactas, com “Rapunzel”. Esta arma teria sido a mesma que aparece no vídeo, tendo sido utilizada para agredir a vítima. Na gravação, ela pede o “ferro”, gíria utilizada para se referir a revólver, a alguém que está no local, uma residência. Depois, Glacy Katreen aplica coronhadas na mulher, que teve uma parte dos cabelos cortados e sai correndo nua pelas ruas do Coroadinho.

“Rapunzel” participou, indiretamente, segundo a investigação do 10º DP, do assassinato de Edson Miller Silva Pinto, no Coroadinho, no dia 11 de janeiro do ano passado, após ter feito uma “casinha” ao rapaz. Por meio de conversas nas redes sociais, ela conseguiu seduzir o garoto e um amigo dele, Erick dos Santos Oliveira, o “Makito”, que, aparentemente, não sabiam que a jovem era integrante da facção rival.

Os dois, então, embarcaram em um ônibus e, quando desceram do coletivo para se encontrar com “Rapunzel”, conforme combinaram nas redes sociais, um desconhecido surgiu e atirou na direção de ambos. “Makito” escapou da morte por pouco, pois o autor, primeiramente, disparou para acertar a cabeça dele, mas errou a mira. Como ele correu, outro tiro foi desferido, que atingiu de raspão a perna de Erik dos Santos. Já Edson Miller, conhecido como “Dodo”, foi baleado na cabeça e morreu no local.

SAIBA MAIS

“Rapunzel” e “Val” ainda estão presas, mas conduta semelhante a delas pode ser notada em outras mulheres que se envolvem com a criminalidade. São comportamentos que influenciam outras a ingressarem nas facções criminosas. Quando não são “batizadas”, tornam-se simpatizantes. Em uma das organizações que atuam na Grande Ilha, elas são chamadas nas comunidades de “cunhadas”. De comandantes em confrontos, com homens nas fileiras a idealizadoras de ciladas, elas podem, caso a situação se agrave, superlotar o presídio feminino.

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