Artigo

Outros de nós

Atualizada em 11/10/2022 às 12h31

Cresci ouvindo que o Brasil era o País da alegria, da harmonia, do respeito às diferenças, do futebol e do Carnaval. Por aqui não há terremotos, nem tsunamis, até as estações do ano se confundem e entrelaçam-se. Talvez, resquício de fantasia herdada da narrativa quase fotográfica de Pero Vaz de Caminha ao descrever o Brasil e suas belezas ao Rei de Portugal.

É bem verdade que por aqui ainda há vizinhança e amizade. Ainda somos capazes de nos juntar, no clube, na praia, na igreja ou no velório. Ainda há motivos e ambientes de sociabilidade. No entanto, não se pode negar, temos visto crescer a indiferença. Indiferença aos grandes problemas comuns, que cada vez mais evidencia figuras, pessoas e performances em detrimento de projetos. As redes modernas, mais virtuais que sociais, tem sido por vezes instrumentalizadas para a propagação do ódio, do preconceito e da intolerância. Dificuldade de respeitar quem não sobe, ou não quer subir, a montanha pelo mesmo lado, ou segurando na mesma corda. Quase um “circo de Nero” da sociedade moderna, onde quem devora, e é devorado, divide o mesmo espaço e suor, sob o calor e a vibração de uma plateia uníssona, cuja excitação é sobremaneira sanguinária.

A diversidade é um valor, uma riqueza da criação. É no outro que vemos a nós mesmos e em nossa própria medida está o alcance do amor que devemos ter, ou que escolhemos não ter para com o semelhante. Aqui, talvez, nos ajude a regra de ouro do Evangelho: “Tudo quanto quereis que os outros vos façam, fazei também a eles” (cf. Mt 7, 6.12 - 14). Parece estar aí à essencialidade do ensinamento cristão. Mais que isso, uma chave para as relações humanas, genuinamente marcada pelo igual (semelhança) e pelo diferente (personalidade). A propósito, a quem mesmo interessa tanta divisão? A quem ou a que se alimenta quando um povo está dividido? Não seria o diálogo, ainda, um instrumento de superação e construção social?

Não sei se estamos suficientemente conscientes sobre o que estamos vivendo. Ou, se as análises de conjunturas até então apontadas, revelam com nitidez a gravidade do desequilíbrio ao qual estamos imersos. Talvez, em paralelo pudéssemos refletir sobre quais os pontos comuns precisamos considerar e, num esforço verdadeiramente coletivo, buscar alternativas. Temos perdido tempo nas nuances de uma famigerada “crise” que antes de tudo é humana e de relação. Com pouco ou nenhum pudor, temos execrado ideias e pessoas, pelo simples fato de não segurarem a mesma bandeira, ainda que integrem e militem às mesmas fileiras.

Não é demasiado lembrar que a história recente do nosso País já nos impôs sofrimentos igualmente sombrios. No entanto, nunca faltaram vozes e atitudes para sinalizar a esperança, numa utopia por vezes profética, que ultrapassa cores e “ismos” para tocar na memória, na luta e na vida do povo, fazendo gerar consciência e protagonismo, recontado a história.

Daqui a pouco chega a Copa do Mundo, outra vez estaremos a torcer pelo Brasil, vibrando com cada gol, sonhando com a taça. Ao menos, por algumas horas, estaremos juntos de novo, gritando e torcendo por uma Nação, propositalmente dividida. De repente, quem sabe, como que numa “topada” na rua, descobrimos que ao nosso lado, atrás de nós, ou à nossa frente, caminham outros de nós.

Kécio Rabelo

Advogado, membro da Comissão Justiça e Paz de São Luis

Leia outras notícias em Imirante.com. Siga, também, o Imirante nas redes sociais Twitter, Instagram, TikTok e canal no Whatsapp. Curta nossa página no Facebook e Youtube. Envie informações à Redação do Portal por meio do Whatsapp pelo telefone (98) 99209-2383.