Livro

Humboldt, o inventor da natureza

A vida e as descobertas do alemão que compreendeu e explicou a natureza como a vemos hoje

Antonio Carlos Lima/ Especial para o Alternativo

Atualizada em 11/10/2022 às 12h15
Humboldt e o amigo botânico Aimé Bonplant, tendo ao fundo o Chimborazo
Humboldt e o amigo botânico Aimé Bonplant, tendo ao fundo o Chimborazo (Humboldt, )

Um dia, Frederico II, rei da Prússia, perguntou a Alexander, um garoto impetuoso e inteligente que gostava de colecionar plantas, filho de um nobre de sua Corte, se ele pretendia conquistar o mundo, como fizera seu homônimo Alexandre, o Grande. O menino, conhecido também pela falta de modéstia, respondeu: “Sim, Majestade, mas pelas ideias”.

Muitos anos depois, Alexander von Humboldt (1769-1859) haveria de lembrar aquele diálogo com o rei, pois a sua pretensão, simples arroubo infantil contado em família, se cumprira. Para seus contemporâneos, ele foi, depois de Napoleão, o homem mais famoso e admirado do mundo. Hoje, fora do ambiente acadêmico e dos movimentos ecológicos, Humboldt está quase esquecido, mesmo após a celebração, em vários países, em 2019, do aniversário de 250 anos de seu nascimento.

Em 1799, aos 30 anos, esse filho da aristocracia prussiana (a Prússia era um extenso território que incluía a atual Alemanha), acompanhado do botânico francês Aimé Bonplant, cinco anos mais jovem do que ele, decidiu realizar, com autorização do governo espanhol e com seus próprios meios e recursos, uma expedição científica à América do Sul. Queria desvendar os segredos da desafiadora e desconhecida natureza do continente, àquela altura já parcialmente degradada pela ação dos colonizadores.

Numa viagem épica, feita em lombos de mulas ou a pé, muitas vezes descalço, em embarcações precárias, percorreu milhares de quilômetros no continente. Desbravou a flora e a fauna, a geografia, escalou vulcões e mergulhou em abismos, observou as nuvens e as estrelas e conheceu a realidade dos povos indígenas e criollos, em regiões que depois se tornariam nações independentes.

De volta à Europa cinco anos depois, provocou uma revolução nos estudos sobre o meio ambiente. Demostrou, por exemplo, que a Terra é uma ser vivo, orgânico, no qual tudo, o homem, os seres vivos e inanimados, o solo, as águas, os continentes estão interligados pela mesma cadeia da vida. E alertou que os humanos, com a devastação do meio ambiente, estavam provocando mudanças climáticas que iriam alterar essa harmonia e causar catástrofes, com gravíssimas consequências econômicas e sociais, como as que hoje abalam o planeta. Polímata, produziu obras fundamentais sobre botânica, zoologia, climatologia e geografia, e escreveu o famoso Cosmos, em cinco volumes, com ideias que até hoje influenciam cientistas, escritores e artistas em todo o mundo.

Grande livro, grande homem
A vida extraordinária de Alexander von Humboldt, um dos maiores cientistas do século 19, é o tema de um grande livro: A invenção da natureza, da inglesa-alemã Andrea Wulf. (Crítica, Planeta, 586 p.), publicado em 2016, ainda em catálogo.

O livro é um retrato vívido, realista, pulsante da vida desse homem que, além de apresentar ao mundo uma América desconhecida e de contribuir para o avanço das ciências naturais, inspirou Simon Bolívar, de quem foi amigo, a libertar os países latino-americanos do domínio espanhol; levou Charles Darwin a se interessar pelas ciências sociais e a produzir A origem das espécies; condenou a escravidão promovida pelos colonizadores; defendeu os povos nativos e despertou a consciência universal sobre a necessidade de conter o avanço das agressões ao meio ambiente.

Tão fluida e prazerosa é a leitura dessa biografia, detentora de vários prêmios internacionais, que a autora parece nos conduzir pela mão aos ambientes da infância e da formação de Humboldt, ao cume do Chimborazo, considerada à época a montanha mais alta do mundo, no Equador, que ele atingiu pela primeira vez. Ou às correntezas do Orinoco, na Venezuela, para confirmar a sua ligação com a bacia amazônica, na fronteira do Brasil; às vastidões dos Alpes franceses; ou, ainda, às vastas estepes da Rússia, lugares percorridos pelo naturalista. A escritora abre-nos a porta dos salões onde fervilhavam as ideias inspiradas pelo Iluminismo e pelos ideais da Revolução Francesa e nos permite participar de reuniões de Humboldt com o poeta Goethe, nas quais discutiam ciências e falavam de poesia. Ou nos guia até a casa pobre de Thomas Jefferson, em Washington, onde o naturalista foi recebido como sábio e herói, durante sua expedição à América.

O garoto compenetrado que um dia disse ao seu rei que iria dominar o mundo pelas ideias dá hoje o nome a uma corrente no Pacífico, a monumentos, parques e montanhas na América Latina, como a serra Humboldt, no México, e a uma universidade na Alemanha. O nome daquele menino está numa cidade argentina, num rio brasileiro, num gêiser do Equador e em uma bacia na Colômbia.

No momento em que vemos no Brasil a devastação das florestas da Amazônia, as secas calcinando o Nordeste, rios secando, como o Paraná, na divisa com do Mato Grosso, e a ameaça de falta de energia elétrica pela insuficiência de água nos reservatórios das hidrelétricas, a leitura de A invenção da natureza nos esclarece, em prosa deliciosa, que tudo foi antecipado por Humboldt.

Trata-se de um grande livro sobre um homem acerca do qual o rei Frederico Guilherme disse ser “o maior e mais formidável de todos os homens desde o Dilúvio”.

Bonplant escolheu viver (e morrer) na América

A vida do médico e botânico Aimé Bonplant (1773-1858), companheiro de Humboldt em sua expedição à América, daria um romance.

Depois de dividir com o grande naturalista o estrelato alcançado com o resultado da viagem e dos livros que publicaram, ele distanciou-se do mestre e de suas pesquisas. Aceitou convite da imperatriz Josefina, esposa de Napoleão Bonaparte, para dirigir o Jardim Botânico real. Casou-se, deixou a vida na Corte e tomou uma decisão radical: enquanto Humboldt se encarregaria de escrever mais sobre a América, ele iria viver na América!
Em 1817, estabeleceu-se em Buenos, mas o seu desejo era viver na floresta. No povoado Santa Ana, às margens do rio Paraná, implantou uma pequena chácara, para estudar as propriedades da erva mate, e para lá levou a mulher e a filha dela de casamento anterior. Cometeu o erro de ignorar que o território da outra margem do rio era reivindicado pelo Paraguai, governado pelo ditador José Gaspar de Francia, o Supremo Ditador Perpétuo. O ditador decretara que o cultivo do mate era monopólio de seu país.

À meia noite do dia 8 de outubro de 1821, soldados paraguaios sequestraram e levaram Bonplant para o outro lado do rio. Acusado de espionagem, foi obrigado a viver confinado durante nove anos na vila de Santa Maria, servindo à população como médico e trabalhando com agricultura e pesquisas botânicas. Para libertá-lo, de nada adiantaram os apelos da comunidade científica internacional, de chefes de Estado e até do libertador Simón Bolívar, de quem fora amigo em Paris juntamente com Humboldt. Em Santa Maria, casou-se com uma índia guarani, de quem teve dois filhos. Ao deixar o Paraguai, não pode levar a nova família. Voltou a Buenos Aires, mas não reencontrou a primeira mulher nem a enteada que deixara dez anos antes. Tinham voltado para Paris.

Ele então instalou-se numa choupana à margem do rio Uruguai, e em seguida resolveu viver no Brasil. Na então pequena vila de São Borja, no Rio Grande do Sul, comprou uma pequena estância, onde plantava mate, criava gado e cultivava rosas, sua paixão de botânico. Casou-se novamente com uma argentina. Viveu durante vinte anos em São Borja, onde andava descalço pelas ruas., como um camponês. Escolheu passar seus últimos dias na antiga propriedade de Santa Ana, onde morreu, aos 85 anos, pobre e quase sozinho.
O explorador francês Robert Ave-Lallemant, que esteve no Brasil na segunda metade do século 19 (inclusive, em São Luís do Maranhão), em 1859 foi a São Borja para conhecer a casa em que Bonplant viveu, e assim a descreveu no livro Viagem pelo sul do Brasil: “A casa tinha ainda o teto de palha, as singelas paredes de barro sustentadas por varas de bambus. Em uma parede, colocara Bonpland uma farmácia, pois praticava a medicina em São Borja, como médico, da maneira mais desinteressada. Tão ermo e vazio como a casa do célebre botânico, estava seu pomar. Elevavam-se ainda, acima das ervas, belas laranjeiras, pessegueiros e roseiras; em toda parte se reconhecia ainda a mão organizadora do velho jardineiro”
A vida de Aimé Bonplant, como dito no início, daria um romance. E deu. Em 2012, o escritor gaúcho Assis Brasil publicou o livro Figura na sombra (L&PM Editores, 246 p.), que acabo de ler. O romance começa justamente com o encontro de Lallemant com Bonplant, pouco antes de sua morte, em Santa Ana. É um livro muito diferente de A invenção da natureza, pois utiliza os recursos da ficção para traçar uma irretocável biografia de Bonplant, enquanto o livro de Andrea Wulf, que se lê como um grande romance, é um retrato biográfico definitivo de Humboldt. Figura na sombra é uma obra apaixonante sobre um cientista que trocou as glórias de Paris pela vida simples na América do Sul.
Como Humboldt, Bonplant eternizou-se. Hoje, empresta o nome a uma cratera da lua, a um gênero botânico, a um asteroide, a uma montanha na Nova Zelândia e a um pico na Venezuela. No Brasil, dá nome uma modesta rua em São Borja. E nada mais. l

Jornalista e escritor. Membro da
Academia Maranhense de Letras. Email: antoniocglima@uol.com.br

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