Artigo

A humanidade da Deusa

Eline Barros Murad *

Atualizada em 11/10/2022 às 12h15

A Olimpíada de Tóquio veio com seu tradicional desfile de atletas cheios de força, energia, elegância, garra, enfim. Natação, surf, ginástica artística, vôlei, futebol, judô... tantas modalidades para todos os gostos e tendências esportivas. É bom demais ver o desempenho e entusiasmo de jovens que deixam nos estádios vestígios de anos de esforço, disciplina, coragem e sacrifício, entregando-se ao empolgante e maravilhoso espetáculo dos tempos modernos, herança dos gregos ancestrais.

Rebeca, Rayssa, Ítalo, Kelvin e tantos outros, brasileiros ou não, nos encantam permitindo que sejamos transportados para um mundo de magia, onde as leis naturais estão suspensas momentaneamente e corpos flexíveis desfilam plasticidade e leveza, como sugerindo nuvens levadas pela brisa ou furacões, movimento de folhas, agito do mar, ballet na planície ou salto no abismo (porque não?). Além da trilha sonora, inusitada mistura de funk, rap e tocata de Bach, acompanhando o solo das brasileiríssimas Rayssa (maranhense) e Rebeca. Obrigada, meninas.

Os jovens desportistas deslumbram ainda por se apresentarem como renovados guerreiros, talvez. Mas guerreiros nada ortodoxos pois sua missão é de paz, mostrar superação de feitos anteriores, desafiar com armas metafóricas o possível rival e sobretudo nos encantar: nós que estamos do outro lado do mundo, olhos fixos na telinha e atenção voltada para as aventuras da novíssima geração de armadores, argonautas, aventureiros, caçadores de si.

Entretanto neste espetáculo da elite do esporte, um acontecimento provocou impacto por envolver uma estrela de primeira grandeza, a americana Simone Biles. Detentora de um monte considerável de medalhas – ouro, prata e bronze – Simone desistiu da competição, gerando especulações, uma vez que tal renuncia equivaleria a uma ruptura com o espírito olímpico de nunca desistir.

Acontece que vivemos a era do ‘alto desempenho’. Patamares de perfeição, tão louvados quanto desejados, são perseguidos em uma luta pelo poder pessoal, por meio da superação progressiva dos próprios limites, e entendidos como passos decisivos na aquisição da autoestima e autoconfiança (fundamentais ao almejado equilíbrio emocional). Só que esse objetivo, certamente necessário, tomou proporções inauditas, tornando-se um fim em si mesmo. Como resultado, um acúmulo de responsabilidade e tensão inevitavelmente cobrará um preço, em algum momento e algum lugar.

Simone sentiu o peso da cobrança externa, mas feita sobretudo por si mesma. Sentiu o sinal vermelho interior alertando o perigo iminente e resolveu dar um basta, assumindo paradoxalmente o papel de ‘senhora do seu destino’.

Sua decisão será alvo de críticas. Entretanto, vejo o lado positivo nessa brusca mudança de rota na encruzilhada. Simone reconheceu que não pode tudo; que nem tudo depende dela; que na tentativa de ir além, poderia desgastar sua saúde física e mental. E agindo contra o espírito do tempo, ‘eu posso’, abre caminho a uma nova geração que vai continuar acreditando em sua força e determinação, mas também adquire o direito de duvidar, hesitar, de poder voltar atrás e de reconhecer que somos humanos, não deuses do Olimpo. A humana Simone nunca foi tão deusa como agora.

* Professora aposentada da UFMA

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