Folia momesca

Passistas de escolas fazem planos para Carnaval 2022

O cancelamento do Carnaval deste ano foi triste para os foliões; para quem vive da festa, o luto alcança outras dimensões, conforme relata Selminha Sorriso, porta-bandeira da Beija-Flor

Atualizada em 11/10/2022 às 12h17
Desfile da Beija-Flor, uma das mais destacadas escolas de samba do Rio de Janeiro
Desfile da Beija-Flor, uma das mais destacadas escolas de samba do Rio de Janeiro (Desfile da Beija-Flor)

RIO - Correr ao ateliê para os últimos retoques na fantasia. Conferir a limpeza da bandeira, que tem que chegar imaculada à Marquês de Sapucaí. Ensaiar mais uma vez o bailado, e outra, e uma mais. Dar conta das entrevistas solicitadas por jornalistas do Brasil e do mundo. Fevereiro é assim já há 30 anos para Selminha Sorriso, a multivitoriosa primeira porta-bandeira da premiada escola de samba Beija-Flor de Nilópolis. Só que, em 2021, a necessidade de se resguardar do coronavírus fez a passista usar uma máscara nada carnavalesca, sem brilhos nem lantejoulas.

Sorridente, Selma de Mattos Rocha não ganhou a alcunha de Selminha Sorriso à toa. É chamada assim desde criança, quando desfilava na ala mirim da pequena Unidos de Lucas. Agora, para além de voltar a rodopiar na avenida, ela sonha com a reconquista da liberdade. "Quando puder, vou ser a primeira a tirar a máscara e mostrar meu sorriso. Mas agora tenho um vazio muito grande no meu peito", lastima.

Até poder se livrar da proteção facial, conforma-se com a vida sem lantejoulas, penas e plumas: participa de lives (já foram mais de 100 desde 2020, sempre com foco no ofício), planeja o 4º Encontro Nacional de Mestre-Salas e Porta-Bandeiras, que será dia 27, na casa de shows Imperator, e mantém sua rotina suada de exercícios físicos. E tenta se equilibrar financeiramente a despeito das perdas de receita com o cancelamento do Carnaval — determinado diante do descontrole da pandemia no Rio.

São mais de 17,9 mil mortos na capital (praticamente o mesmo número verificado no município de São Paulo, que tem o dobro de habitantes) e em torno de 3,6% da população vacinada contra o coronavírus.

Lamentos

Para o folião mais devotado, começar o ano sem pular nas ruas e na Sapucaí é motivo de lamentos. As redes sociais estão cheias — quanto mais árida a vida, dizem, maior é a sede pela diversão. É maior ainda depois de um ano como 2020. Mas para quem vive do carnaval, o luto ainda está em elaboração e alcança outras dimensões.

"Estou oscilando. Minha ficha caiu quando marcaram uma gravação para o dia 4 de fevereiro, que, se tudo estivesse normal, seria o último ensaio na quadra da Beija-Flor antes do carnaval. Aí pensei: é real, não vai ter", relembra Selminha.

"Se agora fosse carnaval, eu estaria naquele desespero para cumprir a agenda. Nesse período, sou celebridade. Mestre-sala e porta-bandeira são a cara da escola, como o mestre de bateria, a rainha. São dias em que eu saio com várias bolsas no carro, com 2, 3 vestidos para trocar, sempre olhando se a bandeira está limpa, e também sempre aprimorando a coreografia", diz Selminha, que mora na Vila Valqueire, subúrbio da zona oeste, com o filho, de 20 anos.

A aguardada comemoração de seus 50 anos de idade, dos 25 de Beija-Flor, dos 30 com o parceiro de dança Claudinho, todas as marcas de 2020, que encheriam de admiradores a quadra de Nilópolis, na Baixada Fluminense, foram abortadas pela urgência do distanciamento social (o aniversário não foi cancelado, acabou sendo uma festa on-line). Otimista, Selminha, porta-bandeira desde 1989, cultivou por meses a vã esperança de que 2021 seria diferente.

"No meio de 2020, eu achava que agora ia ter Carnaval, que ia dar tempo, que tudo iria andar, que o Brasil ia conseguir vacinar", rememora a 1º sargento do Corpo de Bombeiros do Estado do Rio, alocada no Palácio Guanabara, sede do governo fluminense. "Eu fiquei chocada quando isso mudou. Mas entendi que era o melhor. É a consciência do sambista. De quem ama essa manifestação, que é nossa prova de resistência, mas compreende que o momento é de cuidar das vidas. Cuidar dos nossos e mesmo de quem não conhecemos. É preciso acreditar que 2022 vai chegar. Só que depende muito da gente".

Elemento fundamental numa escola de samba, e um dos nove quesitos avaliados na competição anual do Sambódromo, o casal de mestre-sala e porta-bandeira tem como missão apresentar o estandarte ao público e aos julgadores, vindo logo no início. Vestidos como nobres, eles guardam o símbolo maior de cada agremiação, um tecido de 1,20 m por 90 cm sacralizado pelo carnaval.

A figura masculina é a de proteção e reverência; a feminina, de graciosidade e leveza - ainda que o traje e o pavilhão possam chegar a somar até metade do que pesa a própria porta-bandeira. Cada gesto é meticulosamente escrutinado pelo júri de bailarinos e coreógrafos. Dentre os cerca de 3 mil componentes que evoluem na passarela, eles fazem parte de uma minoria que, pelas regras, rígidas, não podem sambar.

Viver do Carnaval

Ano após ano, a performance de Selminha e Claudinho, que começaram a trabalhar juntos no hoje longínquo 1992, na tradicional Estácio de Sá, campeã daquele ano, segue nota 10. Não basta não errar (não escorregar, não deixar elemento cênico cair, não dar as costas um ao outro), é preciso demonstrar total sintonia, encantar quem os assiste. E, para tal, eles têm apenas 1 minuto e meio diante das cabines onde ficam os jurados.

São parcos 800 metros de passarela, pouco mais de uma hora de desfile, que passa como um transe. É um jogo que se reinicia a cada carnaval, e o preparo de Selminha para a noite mais importante do ano incluía, antes da pandemia, nove modalidades esportivas, como crossfit, muay thai, natação e futevôlei, além de jazz. As restrições na academia por conta da covid-19 não a deixaram parada. As fotos da malhação compartilhadas no Instagram estão de prova.

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