Artigo

Belas manhãs podem acabar em tardes nubladas

Marcelo Coutinho/Professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro, UFRJ

Atualizada em 11/10/2022 às 12h18

No início do século XX, tínhamos o que a língua de Baudelaire chamava de belle époque. Novas roupas, novos hábitos. Mais leveza, cor e alegria. As pessoas pareciam mesmo dispostas a viverem mais livremente, sem o ranço das instituições enfadonhas emboloradas, que as obrigavam a coisas que só as deixavam mais tristes, ou mais distantes do que realmente queriam. Eram tempos de atrevimento e, sobretudo, bastante ingenuidade. Ali, provavelmente, nasceu inclusive o amor romântico, conhecido nosso desde então. Já havia tal amor conceituado, mas agora numa época para começar a vivê-lo sem culpa.

Poucos anos se passaram e logo vieram as guerras, pestes e depressões. Ninguém podia imaginar isso. O clima era outro até que jovens começassem a embarcar em trens da morte. O belo se desmanchou na obscuridade das instituições, e as trevas apagaram a luz que só começava a brilhar como uma manhã de sol interrompida. Logo essa juventude pronta para se libertar de convenções sociais arcaicas se viu num labirinto sinistro da pior de todas as façanhas humanas, a violência extremista. O século XX foi de sangue e lágrimas. O amor romântico ficou ali apertadinho num quarto da casa semivazio.

Feia época foi a que se seguiu. Não pior do que em séculos anteriores, por certo. Afinal, nada compete com os navios negreiros em matéria de perversidade. Era um holocausto sem fim. De modo que se os tempos modernos não são os melhores, também não são os piores. Na verdade, é bem possível que tenhamos justamente hoje o que há de pior e melhor na humanidade. Mas o que chama mais atenção é o fato de que as coisas mudam. A ideia de que tudo é sempre igual na permanência das coisas se faz tão ou mais ilusória do que a certeza de que nada será como antes. As estações mudam, os dias correm, as horas passam e a vida encurta mesmo quando se encomprida.

Ninguém sabe como será o século XXI. Até 2008 parecia ser outro sonho. A pandemia de 2020 e as mudanças climáticas mostraram a força indomável da natureza a qual julgávamos controlar. Até uma nova guerra fria estamos inventando, e tudo dentro do capitalismo. As ideologias morreram no século passado, e as de hoje são apenas pretextos espúrios entre interesses pequenos e muito, muito rancor. Tudo envelopado em caixinhas de vanguarda. São pérolas de ódio em braceletes de amor. Os laços desses embrulhos pós-modernos desatam sozinhos, e com a mesma facilidade que o casamento acaba. Sim, essa instituição também que por poucas décadas foi encarnada pelo amor romântico também vai se esvaindo.

Algumas “especialistas” já ensinam a não amar. Que o amor é uma tolice imaginária que inventaram e que apenas oprime o verdadeiro prazer do indivíduo, naturalmente desejoso por inúmeras parcerias carnais simultâneas. Fazer sexo com amor é tão mais gostoso quanto um bolo feito com amor, disse uma delas. Amai-vos uns aos outros significa agora o fim da fidelidade. De fato, a fidelidade sempre foi muito traída, ainda mais do alto de algum pedestal conservador, geralmente mentiroso. Não tenhamos a inocência, ou mesmo a limitação nessa altura do campeonato de que achar que o amor romântico é só para dois viverem, como dois pombinhos eternamente. Mas uma visão seca das relações amorosas nada mais é do que prova maior da aridez de almas incapazes de distinguir a vontade das pessoas de se libertarem da igual vontade de elas se encontrarem umas nas outras na comunhão do amor.

Estamos entrando na era das máquinas. Tudo parece agora divertido, rápido e fácil. As pequeninas telas brilham em olhos vidrados como belas manhãs ensolaradas que iluminam a face dos vivos. Sobre a mesa do café nessa nova alvorada, um bolo feito com o amor de ontem ainda quente adoça nossas bocas frias e amargas. Apesar de tudo, ainda esperamos por ele, esse bolo cujo sabor está no carinho de quem o fez mais do que nele mesmo, tal qual o próprio amor. As horas da manhã irão passando. Logo, será tarde. Se as nuvens se fecharem, elas tampouco dirão nada sobre a noite. Belas manhãs podem acabar em tardes nubladas, e noites iluminadas em novas manhãs de lágrimas.

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