Artigo

O padre Vieira no Maranhão

Atualizada em 11/10/2022 às 12h22

Na biografia que deixou inédita e inconclusa do padre Antonio Vieira (1608-1697), João Francisco Lisboa mostra-se escandalizado com a defesa que o jesuíta fez, em cartas e sermões, da escravidão negra, em substituição à escravidão dos indígenas, que queria proibir, mas praticava e aceitava segundo critérios também condenáveis. “Aberrações tão incríveis não podem recomendar o grande orador à estima e admiração da posteridade”, escreveu Lisboa.

Hoje, 322 anos depois de sua morte, Vieira mantém o prestígio e a fama que, nos últimos três séculos, granjeou, com toda justiça, como maior orador sacro da língua portuguesa e uma das vozes mais contundentes, ao lado do espanhol Bartolomeu de las Casas, a erguer-se contra a escravidão do gentio nas colônias da América. Mas, submetido ao juízo severo da história, o “Imperador da Língua Portuguesa” torna-se, nos tempos atuais, uma figura no mínimo contraditória, como previu Lisboa.

É esse homem de carne e osso, que enfrentou os poderosos contra a escravidão indígena, mas justificou o cativeiro dos africanos; que afrontou a Inquisição portuguesa, defendeu os judeus, mas quis entregar Pernambuco aos holandeses; que foi amigo e conselheiro de reis, porém conheceu a frugalidade e a pobreza; é esse homem o personagem central, a figura solar de Vieira na ilha do Maranhão (7 Letras), romance fabuloso que o escritor maranhense Ronaldo Costa Fernandes acaba de publicar.

Ao concentrar sua narrativa no periodo em que Vieira viveu em São Luís, entre 1653 e 1661, Fernandes tenta recriar a sociedade são-luisense dos seus inícios, formada por autoridades inescrupulosas, lavradores desassistidos, mercadores, representantes de várias ordens religiosas, índios cativos convertidos ao Cristianismo e uma multidão de pobres faltos de qualquer assistência, acossados pela fome e pestes devastadoras.

Ficcionista aplaudido desde sua estreia, em 1979, com o romance picaresco João Rama (Editora Codecri), recomendado por Antonio Houaiss como um livro “que ninguém deve deixar de ler” por ser “grande, grande, grande!”, Fernandes conta, com mestria, não uma, mas várias histórias que se entrelaçam, compondo um rico e desconcertante painel dos primeiros tempos coloniais.

Antonio Vieira desembarcou no Maranhão em janeiro de 1653, apenas nove anos após a expulsão dos holandeses do Maranhão, onde se encontravam desde a invasão, saque e parcial destruição de São Luís, em 1641. Nessa terra arrasada, o jesuíta logo se impõe pelo carisma, a oratória de fogo e a ação destemida contra as injustiças dos poderosos e em defesa dos pobres e dos índios.

Em torno de Vieira, o romancista faz circular uma galeria de personagens exóticos, bizarros, que remetem ao realismo fantástico latino-americano e dão colorido e humor à narrativa. Embora seja figura onipresente, como conselheiro, censor dos poderosos e homem de ação, o jesuíta serve de pretexto para a reconstrução da barbárie em que transcorria a vida nessa parte obscura do Novo Mundo.

Em seu novo livro, Ronaldo Costa Fernandes não se ocupa, como o severo João Lisboa, em julgar a figura de Vieira. Apenas reconstitui, com liberdade e rica imaginação, a saga do pregador numa cidade destroçada, dominada por vícios de toda sorte, sem preocupar-se com a falta de estima e admiração que a ele possa ter reservado a posteridade. O resultado é um grande romance.


Antonio Carlos Lima

Jornalista, membro da Academia Maranhense de Letras

E-mail: antoniocglima@uol.com.br

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