Artigo

Quando as palavras não bastam

Atualizada em 11/10/2022 às 12h26

Oh, pedaço de mim,/ Oh, metade arrancada de mim,/ Leva o vulto teu,/ Que a saudade é o revés de um parto/ A saudade é arrumar o quarto/ Do filho que já morreu

(Pedaço de mim - Chico Buarque)

Os versos da canção de Chico Buarque materializaram-se nesse início de ano na vida de algumas famílias. Como uma catástrofe que não avisa sua iminência, um trágico episódio marcou (e marcará) para sempre a vida daqueles que, um dia, conviveram e amaram aquele ente que já não está mais entre nós.

Nessas horas, todos nós ficamos aturdidos, atônitos. Quais palavras são as certas para se acercar de alguém com o coração dilacerado e tentar afagar uma alma em sofrimento? Lembro o personagem Jó. No capítulo 2, do livro bíblico homônimo, há o relato de três amigos que vieram de longe para consolá-lo da desgraça que se lhe tinha abatido. A narrativa dá conta de que “assentaram-se com ele na terra, sete dias e sete noites; e nenhum lhe dizia palavra alguma, porque viam que a dor era muito grande”(Jó 2:13).

Cada um de nós tem sua própria cota de sofrimento e, se esta experiência nos ensina algo, é que não podemos dar conta da dor alheia. Usar a empatia, por melhor que seja, no máximo nos levará a um “como se...”. O que não é ruim ou insuficiente. Mas esta é a parte e o limite que nos toca. É bom ainda assim, pois aquele que sofre saberá de nossa presença e ela, por frágil que pareça, lhe dará o conforto de sentir-se apoiado. Sofrimento é condição de consciência, como sabiamente nos advertiu Adélia Prado. Consciência de que somos iguais, não importam as condições, credos ou histórias. Quando o próximo sofre, cristãmente sofremos todos.

É bem verdade que a vida não nos prepara para os desafios que nos impõe. Ela, senhora do destino, nos desafia com seus enigmas qual esfinge com a promessa de, caso fracassemos, seremos devorados. Mas além - e apesar disto - temos a fé, como nossa mais íntima força para enfrentar os desavisados acontecimentos que nos surpreendem. Fé não é um escape. Ela nos dá sentido verdadeiro e nos remete a Deus, não escondido, mas revelado no homem/Deus Jesus com quem construímos uma relação possível entre iguais em sua condição tão humana quanto a nossa.

Haverá um longo caminho para recompor a vida com a falta daquele que se foi. Não há fórmula pronta que ensine como fazer, mas sei que o afeto que se pode dirigir a eles, o companheirismo e as orações solidárias tornarão este duro processo menos doloroso.

A saudade é nossa alma dizendo para onde ela quer voltar, sintetiza Rubem Alves. A brevidade da vida, o inesperado, a incerteza do amanhã e o sofrimento alheio nos ensinam a sermos mais tolerantes, mais resilientes, mais cônscios de nossa própria limitação. Sem (pré ou pós) julgamentos desnecessários, que não confortam e não consolam. O coração do sábio está na casa onde há luto, adverte o autor de Eclesiastes. A finitude é o pão partilhado por todos. A dor da morte é uma regra sem nenhuma exceção, mas a solidariedade e a compaixão também o são. Mas a dor da perda imprevisível, de uma forma nunca esperada, é muito mais cruel, nos choca e põe a todos nós sem palavras.

Não adianta cogitar, pesquisar, sondar as causas. Os mestres de consolar as pessoas nos falam de inúmeras. Mas quem somos nós para julgar aqueles que cometem o suicídio? Imagina-se que o ato final deve ocorrer após a alma aflita padecer dias, meses, às vezes anos consecutivos de desespero, depressão, até chegar ao limite de todas as suas forças. Acredito que a pessoa que se mata, na hora do ato extremo, deverá estar tão fora de si, que já não poderá mais cogitar se pratica ou não um ato de egoísmo. Aquele que sente que cansou de viver está sozinho numa situação radicalmente vulnerável e de extremo perigo. Que não se culpe ninguém. Que não se acuse ninguém. É um caso insondável. Desta vez, fico com Shakespeare: “Há mais mistério entre o céu e a terra, do que possa cogitar a nossa vã filosofia.” Resta-nos orar para que as almas dos mortos sejam resgatadas, restauradas e renascidas pelo Nosso Senhor Jesus Cristo e tentar consolar aqueles da família, para que possam, confortados, seguir a dura caminhada, chamada jornada da vida. Por Deus, que assim seja!

Natalino Salgado Filho

Médico, doutor em Nefrologia, ex-reitor da UFMA, membro da ANM, da AML, da AMM, Sobrames e do IHGMA

Leia outras notícias em Imirante.com. Siga, também, o Imirante nas redes sociais Twitter, Instagram, TikTok e canal no Whatsapp. Curta nossa página no Facebook e Youtube. Envie informações à Redação do Portal por meio do Whatsapp pelo telefone (98) 99209-2383.