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Moradores têm orgulho de viver em vias com ricas lembranças

Mesmo sem registros oficiais sobre origem dos seus nomes, becos como Feliz, da Caela e do Precipício são considerados parte da vida de muitas pessoas que moram no Centro Histórico; quem só passa pelas vias percebe a magia que as envolve

Jock Dean / Da equipe de O Estado

Atualizada em 11/10/2022 às 12h57
Abílio Soares da  Cruz mora há 50 anos no Beco da Caela, onde criou seus filhos e hoje vive com os netos
Abílio Soares da Cruz mora há 50 anos no Beco da Caela, onde criou seus filhos e hoje vive com os netos (Abilio da Cruz)

Há poucas informações históricas sobre os becos Feliz, da Caela e do Precipício, como o porquê dos seus nomes, mas para quem mora na localidade reconhece que as vias têm importância para a memória do Desterro.

Os becos Feliz, da Caela e do Precipício podem até não ter características urbanísticas e arquitetônicas de destaque ou nunca terem abrigado personagens que marcaram a história de São Luís, mas fazem parte da história diária de ludovicenses anônimos que constroem ou construíram suas vidas nesses endereços. Os moradores dessas vielas são testemunhas pacientes de uma história que parece não querer passar.

Para Domingos Vieira Filho, o Beco Feliz é uma rua que de feliz tem apenas o nome. “Há 40 anos, era sujo e enlameado, limpeza e saúde pública cousa desconhecida dos moradores do Beco Feliz; supomos que assim permanece”, diz Carlos de Lima em seus Caminhos de São Luís (2001), citando Viera Filho. Não há registros do porquê do beco se chamar Feliz.

O sorveteiro Paulo de Buchiné certamente discordaria dos dois autores e quem estivesse de passagem pelo beco no mesmo momento em que ele, ao vê-lo descer a rua com sua caixa de sorvete nas costas e cantarolando em voz uma canção popular possivelmente se perguntaria o levou os dois pesquisadores a serem tão taxativos com o local que hoje não tem mais o lamaceiro descrito, por causa do calçamento de paralelepípedos e com o aterramento da área em que foi construído o Anel Viário e que tirou a maré da localidade.

A cantoria de Paulo de Buchiné é que dá fim ao silêncio do beco cujo principal movimento é o dos cães e gatos que perambulam pelo local. Há mais de 20 anos, ele compra sorvete na Travessa da Lapa de onde segue para o Centro, onde está a maior parte de sua clientela. No percurso, ao cruzar seu caminho com o de algum morador da área, pergunta prontamente: “Quantos? Um ou Dois?”, o que lhe fez ficar conhecido na área como “Quantos?”. “Todos os dias faço esse percurso do Beco Feliz para a Praça Deodoro. Sempre tem um morador que me para e compra sorvete, mas não é comum ter muita gente andando por aqui”, comenta.

A maré subia até o canto do Beco da Caela e todos os dias havia embarcação atracando na área e os pescadores que chegavam nos barcos iam para os bares e os cabarésAbílio Soares da Cruz, morador do Beco do Caela há 50 anos.

Caela - Seguindo seu caminho, ele passa pelo canto do Beco da Caela, onde os netos de Abílio Soares da Cruz costumam brincar. Há 50 anos, desde que se casou, ele mora no beco. Na casa modesta, a exemplo de todas as residências ao longo da viela, ele criou todos os filhos e agora mora na companhia dos netos. “Eu moro no Desterro desde os 8 anos. Hoje, tenho 84. Morava na Rua da Palma e há 50 anos moro nesse beco. As feições do beco não mudaram nada desde que vim para cá”, afirma o pescador aposentado.

O que mudou foi a rotina do local. Nas décadas de 1950, 1960 e 1970, o bairro reunia a boemia da cidade já que era uma aérea que concentrava muitos cabarés. “Até a construção do Anel Viário, as embarcações atracavam aqui perto, no fim das ruas, que seguiam até a beira-mar. Os homens desciam e aproveitavam para beber e se divertir nos cabarés. Depois que os cabarés fecharam o movimento foi diminuindo e hoje o beco é bem calmo”, disse Abílio Soares da Cruz.

Aliás, segundo o morador, o nome do beco, Caela, tem relação com os antigos cabarés existentes na área. “Tinha um português que freqüentava os cabarés e uma das mulheres que trabalhavam em um deles tinha uma filha pequena. Contam que uma vez a criança estava chorando e ele pediu para pegar a menina no colo e disse ‘dá cá ela’. Daí, o beco passou a ser chamado assim”, afirmou. Bem, não há registros históricos da razão do beco ter esse nome, mas não se pode ignorar a tradição popular na construção histórica das localidades.

Precipício - Antiga área portuária, essa tradição é representada pelas lojas de utensílios de pesca que se localizam o fim do Beco do Precipício. A mais íngreme das três ladeiras teve o acesso melhorado com a construção de uma escadaria, o que não foi vista de forma tão positiva por Claudia Paixão, que há 44 anos mora em uma casa ao lado do beco. “Antes de construírem a escada, o beco era mais tranquilo. Agora, toda hora tem gente subindo e descendo”, reclamou.

Sobre o beco, Carlos de Lima diz que “nada importante além do nome de Carlos Humberto dos Reis, que nasceu em São Bento, em 1885 e faleceu, em 1946, no Rio de Janeiro”, diz, explicando o porquê do nome oficial da rua, em homenagem ao jurista, deputado, procurador fiscal do estado e professor da Faculdade de Direito do Maranhão.

Ainda que os três becos tenham “nada importante”, por serem situados em uma das áreas mais antigas da cidade, guardam valor por terem sido o local de passagem das primeiras pessoas que trabalharam na construção da São Luís colonial, cujo legado pode ser visto ainda hoje nos casarões de fachadas azulejadas que são patrimônio da humanidade.

MAIS

O Desterro foi cenário dos primeiros momentos da ocupação portuguesa em São Luís. Caminhando pelas vielas do bairro, é possível encontrar facilmente os traços colonias que perduram até hoje no local. Apesar de localizar-se no extremo oposto da cidadela fundada pelos franceses (cercada por muros), o Desterro já aparece sinalizado na primeira planta da cidade, de 1642, como uma expansão da área urbana, ligado pela Rua da Palma e outros dois arruamentos. Na planta, observa-se a presença de uma rua que desemboca no mar, deixando clara a finalidade portuária na área. O bairro é um dos mais antigos da cidade - um dos onze que compõem o Centro Histórico de São Luís – e já foi tombado pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO) como patrimônio histórico da humanidade. Através de suas ruas é possível contemplar um dos principais conjuntos arquitetônicos do Brasil dos séculos XVIII e XIX.

Os becos, seus caminhos e outros nomes

Rua Formosa - Seu nome antigo deu-se em homenagem à beleza do local, mas na primeira metade do século passado teve sua denominação mudada para homenagear o sexto presidente do Brasil, passando a chamar-se Rua Afonso Pena. Em 1700, apareceu no mapa “Istoria della Guerra Del Regno de Brasile”, do padre Giuseppe de Santa Tereza, como Estrada Real.

Beco da Caela – Teve seu nome mudado para Rua Maranhão Sobrinho em homenagem a José Américo Augusto Olímpio Cavalcanti dos Albuquerques Maranhão Sobrinho, escritor e jornalista nascido em Barra do Corda, em 25 de dezembro de 1879. Foi um dos fundadores da Academia Maranhense de Letras.

Rua da Palma – O nome popular foi mudado para Herculano Parga, em homenagem ao governador do Maranhão de 1914 a 1917. O nome oficial, no entanto, nunca pegou e até hoje a via é conhecida pelo nome tradicional. No trecho que vai do Largo do Desterro até a Rua Afonso Pena, também é chamada de Rua do Precipício por causa do beco de mesmo nome e da declividade do seu terreno.

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