O governo do doutor Sérgio Cabral quer murar 11 comunidades da Zona Sul do Rio de Janeiro. O objetivo proclamado pelos seus sábios é a defesa da mata e o controle da expansão das favelas. Deve-se aos repórteres André Zahar e Italo Nogueira a desmistificação dessa patranha. Os números do Instituto Municipal de Urbanismo Pereira Passos, o centro de pesquisas da prefeitura carioca, informam que, entre 1999 e 2008, a expansão física das favelas cariocas foi de 6,9%.
Pode ser muito, mas as 11 comunidades escolhidas pelo governo de Cabral cresceram 1,2%. A Dona Marta, onde a construção do muro já começou, encolheu 1%. O doutor só quer murar comunidades encravadas na Zona Sul.
Não bastou o vexame ocorrido em dezembro de 2007, quando uma patrulha ecológica subiu à favela da Chácara do Céu para derrubar barracos que invadiam a mata e achou apenas um puxadinho. No lance, seus patrulheiros souberam (e viram) que um condomínio vizinho privatizara o meio ambiente, construindo duas quadras de tênis.
O Muro do Cabral é uma construção do imaginário demófobo. Já em 1926 reclamava-se da "infestação avassaladora das lindas montanhas do Rio de Janeiro pelo flagelo das favelas, lepra da estética". Em 1930, o arquiteto francês Alfred Agache, um dos reformadores do Rio, lembrava que, com a burocracia urbana da cidade, "o operário pobre fica descoroçoado e reúne-se aos sem-teto para levantar uma choupana".
Trocando-se o trabalho objetivo da revisão das posturas pelo culto à subjetividade da teoria da lepra, produziu-se o urbanismo do medo. A primeira proibição de obras em favelas é de 1937.
Às vezes as pessoas, cidades ou mesmo nações acreditam que seus problemas estão encapsulados numa anomalia (a favela, ou a violação de sepulturas), e que as soluções demandam a imposição da disciplina a um pedaço demonizado da sociedade (o muro, ou a perseguição aos índios).
Sepulturas e índios entram nesta história por conta de um episódio da Guerra Civil americana. Sullivan Ballou, um advogado de Rhode Island, alistou-se como major nas tropas da União e, em julho de 1861, escreveu à sua mulher, Sarah, uma das cartas mais bonitas da História.
Ballou morreu uma semana depois, no primeiro grande combate da guerra, e foi sepultado na vizinhança de uma igreja. Gente de seu estado chegou à região para resgatar os mortos e achou o horror. O major fora retirado da sepultura e decapitado. A cabeça sumira e o corpo havia sido queimado. A selvageria foi atribuída aos índios que acompanhavam as tropas do Sul. Mentira. Uma comissão do Congresso investigou o caso e concluiu que não havia índios no lance. Como diria Nosso Guia, quem roubou a cabeça de Ballou foram os "brancos de olhos azuis", muito provavelmente do 21° Regimento da Georgia, o estado de Scarlett O'Hara e de Ashley Wilkes (Vivian Leigh e Leslie Howard em "... E O Vento Levou").
O crânio de Ballou pode ter se transformado em suvenir, pois alguns sulistas desenterravam soldados do Norte e guardavam ossos para mostrar em casa. Convinha acreditar que as tropas do general Lee jamais fariam coisas assim. Era serviço de índio, mas índios não havia.
Quando a exaltação prevalece sobre o raciocínio, alguma coisa acaba dando errado. Se os índios tivessem degolado Ballou, os americanos não teriam que lidar com a realidade dos soldados da Causa Nobre violando sepulturas para roubar caveiras. Se as favelas estivessem engolfando a Zona Sul do Rio, o medo e os muros poderiam alavancar um plano de governo.
Se o doutor Cabral quisesse apenas demarcar a mata e evitar a expansão das favelas, o muro não precisaria ter três metros de altura, bastariam 30 centímetros. Essa medida atende a uma fantasia demófoba e irracional: murando o outro, eu me protejo. Felizmente, os números do Instituto Pereira Passos tiram o véu da iniciativa: estão murando a Dona Marta (que encolheu) e pretendem murar comunidades da Zona Sul cuja expansão foi irrelevante.
É o caso de recitar as últimas linhas do poema "À espera dos bárbaros", do egípcio Constantino Kaváfis:
"Sem bárbaros, o que será de nós?
Ah! Eles eram uma solução".
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