(Divulgação)

COLUNA

Gabriela Lages Veloso
Escritora, poeta, crítica literária e mestranda em Letras pela Universidade Federal do Maranhão (UFMA).
Gabriela Lages Veloso

Fio de Prata

Em 2022, a escritora Margarida Montejano publicou o seu primeiro livro de contos: Fio de Prata, que foi ilustrado por Ruy Assumpção Filho.

Gabriela Lages Veloso

Ilustração: Bruna Lages Veloso
Ilustração: Bruna Lages Veloso

De acordo com Dalcastagnè (2007), nosso lugar na sociedade, definido por gênero, classe social, cor, geração, orientação sexual, e, experiências são fatores decisivos para o nosso modo de enxergar e compreender o mundo. Por esse motivo, um homem, mesmo sendo empático e solidário, não terá experienciado as dificuldades sofridas pelas mulheres, cotidianamente, tais como “ser analisada prioritariamente pela aparência física, o temor da violência sexual, o preconceito renitente nos espaços profissionais. É essa perspectiva feminina (e não um estilo ou uma temática específica) que só as mulheres podem trazer ao discurso literário” (p. 126). Nesse sentido emergem as narrativas de Margarida Montejano, na obra Fio de Prata (2022), que foi ilustrada por Ruy Assumpção Filho.

Margarida Montejano é uma escritora e poeta, natural de Mogi Guaçu (SP). É Doutora em Educação, pela UNICAMP, e atua como Supervisora Educacional na rede pública municipal de Campinas. Tem poemas publicados em antologias colaborativas, e é co-organizadora do livro Cotidiano, poesia e resistência. Além disso, é produtora do Canal N’outras Palavras, no Youtube. Em 2022, publicou, pela Editora Scenarium livros artesanais (SP), o seu primeiro livro: Fio de Prata, que é composto por sete contos, dentre os quais elencamos três, a saber, Se Não Entender, Pergunte, A Mão e o Espelho e O Fio de Prata, para fazerem parte do corpus do nosso ensaio. 

A Menina

O conto Se Não Entender, Pergunte, de Margarida Montejano, é narrado em primeira pessoa por uma mulher, a princípio, anônima, que conta memórias de sua infância, mas especificamente, sobre o seu primeiro dia de aula, quando tinha apenas sete anos de idade. A narrativa inicia com um breve panorama sobre a educação escolar no Brasil. Assim, a narradora dialoga diretamente com o leitor ao indagar: “Você se lembra de um tempo em que a escola pública era só para os filhos de famílias ricas e tinha escolas para meninas e meninos? Depois, veio outro tempo em que as famílias pobres conseguiam disputar as vagas nessas escolas” (MONTEJANO, 2022, p. 99).

Ela lembra que, no seu tempo, a escola já tinha passado por várias modificações, e as salas de aula eram mistas. Ao longo do conto, não há descrições físicas da protagonista, apenas é ressaltada a sua enorme curiosidade. Sua mãe era uma mulher que não havia estudado, por isso, queria que as suas filhas tivessem a oportunidade de ter uma vida mais confortável e independente, do que ela tivera. Por esse motivo, as matriculou em um colégio, e disse a sua pequena filha curiosa que se comportasse bem, e que perguntasse a sua professora, sempre que tivesse dúvidas. A primeira impressão que a menina teve foi a de desapontamento com a falta de cor do prédio escolar. Essa memória trouxe consigo uma reflexão: 

Na porta da sala, estava a diretora e aquela que seria nossa professora a nos esperar. E hoje, a leitura que faço é que elas, naquele momento, já avaliavam, identificavam nossa posição econômica na pirâmide social e previam nosso futuro. Após esse breve instante de olhar avaliativo, a professora indicava a direção para qual deveríamos seguir. Assim a sala de aula foi sendo desenhada — meninas de um lado e meninos, do outro. Eu me lembro de que estávamos agitados e barulhentos. Fiquei meio decepcionada, confesso. As paredes de dentro da sala eram iguais às de fora. Nenhuma cor (MONTEJANO, 2022, p. 101). 

Após a apresentação da professora Ionara, tornou-se perceptível a sua inexperiência e indelicadeza com as crianças. De modo autoritário, e automático, ela fez um discurso para incutir medo nos alunos, ao afirmar que eles não poderiam, de modo algum, interrompê-la, e que ela iria ensiná-los a ler, escrever, fazer contas e aprender “a ser gente”. A menina se sentiu instigada a perguntar o que a professora queria dizer com a expressão “aprender a ser gente”, por isso, disse que não havia entendido, e logo a sua curiosidade foi encarada como algo negativo por sua professora, como um tipo de afronta ou, até mesmo, desrespeito. Como castigo, a criança foi obrigada a sentar na fileira dos meninos, e a permanecer em absoluto silêncio. 

Isso porque “o silêncio era ao mesmo tempo disciplina do mundo, das famílias e dos corpos, regra política, social, familiar” (PERROT, 2005, p. 10). Entretanto, essa tentativa de silenciamento e humilhação não surtiu o efeito esperado. E a menina fez amizade com boa parte dos meninos e percebeu que todos eles eram iguais a ela. Conversaram e brincaram, “coisa que só acontece com as crianças. Sem julgamentos, sem maldade” (MONTEJANO, 2022, p. 110). Desse modo, ela teve um vislumbre do que, mais tarde, entenderia como igualdade de gênero. Compreendeu também que seus colegas tinham as mesmas dúvidas que ela, mas tinham muito medo da professora, por isso, silenciavam-se. 

Contudo, no dia seguinte, a curiosidade da menina passou a ser encarada como algo positivo. A professora havia perguntado porque as outras meninas estavam tão inquietas, e a protagonista respondeu, prontamente: “Acho que elas querem brincar com os meninos e descobrir com a gente como é que a gente vira gente” (MONTEJANO, 2022, p. 113). A professora Ionara perdeu a fala, ficou espantada e pensativa. Mas, ao contrário do que todos esperavam, ela não gritou ou criou novos castigos. Pediu desculpas à turma e ficou totalmente constrangida com o seu comportamento hostil. E, finalmente, chamou a protagonista por seu nome: Eduarda. 

Nome que carrega consigo o ponto central da narrativa, ao significar “guardiã ou protetora de riquezas ou de bens”. No conto, Eduarda exerce o papel de protetora da sabedoria e do conhecimento. Assim, a criança “antes retratada de forma modelar, com obediência e passividade, agora rompe com a normatização do mundo dos adultos na busca de liberdade de expressão e de pensamento, além da valorização da capacidade infantil de inventar e imaginar novas realidades, deslocando verdades cristalizadas” (SOARES & CARVALHO, 2015, p. 80). Por sua vez, Ionara quer dizer literalmente “pomba”, simbolizando a paz. Mas esse nome só assume o seu real significado, após a intervenção da pequena menina. 

Logo a professora explicou o motivo de sua agressividade. Aquele também fora o seu primeiro dia de aula, por essa razão, estava nervosa e acabou repetindo as atitudes e palavras que aprendeu quando era aluna, com seus professores tradicionais. Além disso, os seus colegas, que tinham uma carreira mais prolongada no magistério, haviam lhe aconselhado a “ser firme no primeiro dia”. Dessa forma admitiu o seu erro, e disse, em um tom suave: “Quero muito ensinar vocês a ler, a escrever, a contar histórias e a pensar. Quero aprender com vocês a crescer e a me tornar uma boa professora. Uma boa pessoa. Vocês me ajudam?” (MONTEJANO, 2022, p. 115). A pequena menina havia lhe ensinado uma valiosa lição, a escola deve ser um ambiente acolhedor, que respeite e, na medida do possível, lide com a ansiedade, os medos e a curiosidade infantil, pois enquanto 

formadora de imagens, a literatura mergulha no imaginário coletivo e simultaneamente o fecunda, construindo e desconstruindo perfis de crianças que parecem combinar bem com as imagens de infância formuladas e postas em circulação a partir de outras esferas, sejam estas científicas, políticas, econômicas ou artísticas (LAJOLO, 2009, p. 228). 

Desde o início do conto a narradora evidencia que as crianças também devem ser vistas como importantes sujeitos no processo de ensino-aprendizagem, uma vez que, segundo Esopo, “ninguém é tão grande que não possa aprender, nem tão pequeno que não possa ensinar”. A protagonista conclui a narrativa explicando que, enfim, compreendeu o que faz com que uma pessoa aprenda a “ser gente”: conseguir falar e ser ouvido, bem como pensar coletivamente. De acordo com Soares e Carvalho (2015), ao longo do tempo, a criança foi submetida à obediência e reprodução de “bons comportamentos”, mas, atualmente, “passa a ocupar um papel bem mais importante, passa a ter voz. Assim, há uma dessacralização não só na representação da menina, mas nas relações familiares e sociais” (p. 82). 

Portanto, a protagonista representa uma subversão dos papéis sociais da menina, ao ter como principal atributo a curiosidade que, por tantas vezes, foi brutalmente silenciada nas mulheres, condenando-as, até mesmo à fogueira. Eduarda simboliza o empoderamento feminino e a igualdade de gênero. Comprova que não se pode mudar algo repetindo velhos modelos e preconceitos desgastados. Consequentemente, é uma personagem que desestabiliza rotinas e olhares estreitos. Após essa breve investigação da representação da menina em Se Não Entender, Pergunte, daremos prosseguimento à análise da obra Fio de Prata (2022), de Margarida Montejano, através do estudo da figura feminina no conto A Mão e o Espelho

A Mulher

O conto A Mão e o Espelho (2022) é narrado em primeira pessoa pela protagonista, que se chama Márcia. A personagem lembra de um episódio que ocorreu quando ela tinha, aproximadamente, 20 anos de idade. Em uma sexta-feira, no interior de São Paulo, na agência bancária onde trabalhava, o movimento de clientes estava baixo, por isso, Márcia e seu amigo Jorge estavam conversando, para passar o tempo. Ele, então, a desafiou a usar algum de seus talentos para que eles saíssem daquele estado de sonolência e tédio. Logo a protagonista teve uma ideia: iria fingir que praticava a quiromancia (ato de ler as mãos e adivinhar o futuro). Assim, fez uma previsão do futuro de seu amigo, com base nas informações que sabia sobre ele, considerando as possibilidades. 

Ela disse que Jorge iria se transferir de agência, pois seria promovido em breve e, que após sua formatura, iria se casar com uma jovem que não era a sua atual namorada. Ele ficou um tanto pensativo e desconfiado, mas não questionou o presságio que lhe fora dado. Enquanto isso, Márcia se divertia às custas da ingenuidade do seu colega de trabalho. Tudo que dissera era provável que acontecesse. Jorge estava prestes a se formar, era um funcionário excepcional e estava enfrentando uma grande crise em seu namoro. Em consequência disso, a formatura, a promoção e o novo relacionamento eram fatos. Algum tempo se passou e ele realmente foi promovido e teve de mudar de cidade, a notícia alegrou a protagonista, mas também a deixou com saudades do amigo. 

Com o transcorrer do tempo, Márcia se esqueceu da brincadeira e continuou trabalhando no mesmo banco. Em uma manhã, antes do expediente começar, ela recebeu uma visita inesperada, era ninguém menos que Odete, a mãe de Jorge. Ela, então, pediu uma conversa particular. Na cozinha da agência bancária, a senhora, com aflição e lágrimas nos olhos, implorou que a jovem lesse o futuro nas palmas de suas mãos, como fizera com Jorge. Tudo havia se cumprido, ele agora trabalhava em uma outra cidade, após a promoção, estava formado e tinha se casado com uma mulher encantadora. Ela também queria saber como seria sua vida, daquele momento em diante, pois estava completamente sem esperanças. 

Assim, Odete lhe falou “da traição e separação do marido que tanto amava, das dificuldades que tinha com os filhos mais novos e do medo de não conseguir lutar e seguir sozinha, pois estava a ponto de desistir de tudo. Ela desabou ali e contou-me de suas dores. A mim, uma mulher desconhecida” (MONTEJANO, 2022, p. 78). Consumar uma separação não é algo muito simples, uma vez que a convivência entre os cônjuges leva a dependência emocional. Desse modo, muitos casais tendem a ignorar os problemas do relacionamento, simplesmente, para permanecerem juntos, até que a situação se torne insustentável, e, resulte no divórcio. A crença ilusória de que a felicidade só pode ser encontrada no amor, que surge no casamento, induz a uma dor intensa no momento da separação. 

Além disso, de acordo com Dalcastagnè (2015, p. 147), a relação entre mãe e filhos é permeada por “sentimentos pouco definidos [...] que, uma vez consolidados, podem se transformar em obrigações, tão mais prementes quanto mais vagas elas se apresentarem. E é nesse caldeirão que se requentam os ressentimentos, as culpas, as frustrações de lado a lado”. Assim encontrava-se Odete, dividida entre a dor advinda do divórcio e o medo de não conseguir criar seus filhos sozinha. Havia dedicado sua vida àquele casamento, por isso, era dependente emocional e financeiramente. Nessa situação desesperadora, ela tomou a decisão de falar com a mesma mulher que previu tanta fartura e felicidade ao seu filho mais velho. 

Márcia, primeiramente, explicou que aquilo fora uma mera coincidência. Ela não praticava a quiromancia, e estava apenas brincando com seu amigo Jorge, para vencer a monotonia. Mas a senhora não acreditou e continuou insistindo e estendendo as mãos para a jovem, pois precisava ouvir algo que lhe desse motivos para continuar. Percebendo o sofrimento daquela mulher, a protagonista prontamente lhe ofereceu um ombro amigo, ouviu suas dores e chorou junto com ela. Quando Odete estava mais calma e recomposta, Márcia lhe disse que ela conseguiria enfrentar aquele momento difícil com a força, coragem e amor que somente as mulheres possuem. Essas palavras simples deram um novo ânimo àquela mulher. 

“Quando a ouvi, entendi o quanto precisamos, nós mulheres, umas das outras e, não importa o quanto somos próximas ou distantes, nos fortalecemos quando estamos juntas. Quando nos ouvimos, quando nos damos as mãos!” (MONTEJANO, 2022, p. 83). Nesse instante, Márcia — cujo nome significa “guerreira”, e que é atribuído a alguém que luta por grandes causas — enfim, aprendeu o significado da palavra sororidade. Segundo Leal (2009), esse termo provém do latim soror, que quer dizer “irmã”, por isso, denomina um tipo de “solidariedade específica entre mulheres e tem se popularizado em diversos âmbitos midiáticos, especialmente na internet, um espaço primordial para a expansão do feminismo [...] teria o potencial de mostrar às mulheres a maneira correta de agir umas com as outras” (p. 09). Conforme, Dandara Tinoco, em uma matéria publicada no jornal O Globo, em março de 2016, a palavra sororidade seria utilizada para “expressar empatia entre mulheres”: 

Um substantivo feminino ausente de dicionários clássicos de língua portuguesa [que] vem sendo repetido com vigor entre jovens mulheres que militam pela igualdade de gênero. Disseminada em redes sociais, a palavra é salpicada em frases como “A sororidade pode salvar vidas”, “Sororidade gera sororidade” ou, ainda, “Estamos aqui umas pelas outras. Isso é sororidade”. Numa definição corrente na internet, “sororidade” se refere a uma espécie de pacto entre mulheres relacionado às dimensões ética, política e prática do feminismo contemporâneo. Ou, simplesmente, uma aliança baseada na empatia e no companheirismo.

Um longo tempo se passou, e muitas mudanças aconteceram na vida da protagonista. Desligando-se do banco, ela foi morar no Rio de Janeiro, onde se formou, tornando-se professora, bem como se casou. Um dia, quando estava em uma farmácia da sua cidade natal, foi surpreendida por uma mulher já envelhecida. Era Odete, cujo nome remete a alguém que possui muitas riquezas, que podem ser também virtudes, e não somente bens materiais. Assim como no conto Se Não Entender, Pergunte, analisado anteriormente, o nome dessa personagem só assume o seu real significado, após o encontro com a protagonista. Isso porque, segundo a própria Odete, as palavras de apoio e esperança, proferidas por Márcia, a impulsionaram a reconstruir sua vida, deram-lhe autoestima e autonomia. Desse modo, ela conseguiu criar seus filhos sozinha e aprendeu o importante caminho do amor-próprio. 

Então, a protagonista lhe respondeu: “Quanto às palavras ditas naquele dia, é preciso que eu lhe diga: mirei os seus olhos marejados e, naquele momento, eles pareciam um espelho. Um espelho refletindo… e, o que eu neles lia e repetia em voz alta, eram os seus desejos” (MONTEJANO, 2022, p. 84). Aliás, a narrativa finaliza com a revelação do objeto que Márcia estava comprando na farmácia, um espelho. Vale ressaltar que, de acordo com Chevalier & Gheerbrant (2001), uma das simbologias desse objeto é a adivinhação, pois o espelho, é, por vezes, considerado um objeto mágico, capaz de reverberar passado, presente e futuro. É um dos modos mais antigos utilizados para fazer previsões. 

Dessa forma, o título do conto, A Mão e o Espelho, ganha um significado mais amplo, ao remeter às ideias de mistério e adivinhação, mas também de sororidade, na medida em que as mulheres são reflexos umas das outras, e unidas tornam-se mais fortes. Portanto, Márcia e Odete representam as duas faces de um mesmo espelho. Enquanto a primeira trata-se de uma figura feminina inserida no mercado de trabalho, consciente do seu valor e direitos. A segunda é o retrato de uma mulher que trabalha incessantemente, mas sem remuneração, como dona de casa e mãe em tempo integral. Somente unidas, elas defrontam-se com verdades, antes desconhecidas ou ignoradas: a importância da empatia e do amor-próprio. Diante disso, após esse estudo acerca da representação feminina em A Mão e o Espelho, a seguir, procederemos à leitura de O Fio de Prata, a fim de compreender como a mulher idosa é retratada, no referido conto de Montejano. 

A Idosa

O conto O Fio de Prata (2022) é narrado em primeira pessoa por uma protagonista, inicialmente, anônima. Essa personagem está no sul de Minas Gerais, hospedada em uma casa antiga, mas bem conservada, que havia sido transformada em uma pensão. Boa parte da narrativa gira em torno de Maria Teresa, uma mulher quase centenária, muito gentil, lúcida, e que é proprietária da pensão. Nas horas vagas, é uma contadora de histórias nata. Em uma noite, durante uma forte tempestade, um raio atinge os fios elétricos e deixa todos em completa escuridão: “Aproveitando a nostalgia que a ausência de luz provocava naquela noite e, entre uma respiração profunda e pausas prolongadas, minha anfitriã contava sobre as lembranças antigas daqueles dias que habitavam sua existência” (MONTEJANO, 2022, p. 124). 

Desde o início do conto é perceptível um ar de mistério que paira sobre essa antiga construção. A protagonista nota algo curioso, não há espelhos. Por isso, indaga sua anfitriã que responde, prontamente, que nunca houve um espelho sequer naquela casa. Assim a narradora-personagem dá voz à Maria Teresa. Logo, ela demonstra, minuciosamente, que esse temor havia um motivo. Há um longo tempo, ela estava sentada naquele mesmo lugar juntamente com seus filhos, marido e sogra, iluminados apenas por uma vela. Para vencer a monotonia, Maria contava a história do espelho de Narciso, que apaixonou-se pela própria imagem refletida na fina lâmina das águas de um rio. Sua sogra lhe interrompeu, com uma voz embargada, dizendo que não suportava espelhos, e, por isso, eles não tinham nenhum em casa. 

Quando a sogra de Maria Teresa era jovem, recebeu um espelho de presente de um cigano. Contudo, não se tratava de um espelho comum, ele tinha um certo tipo de magia que refletia os desejos secretos das pessoas. Por esse motivo, a jovem enxergou a bela imagem do cigano, e percebeu que estava apaixonada por ele. Entretanto, não passava de um amor platônico, e o rapaz estava apenas de passagem pela vila onde ela morava. Deixou-lhe o espelho e partiu sem se despedir. Apesar disso, a jovem via no espelho mágico que o cigano iria retornar. Isso, porém, não aconteceu. E a senhora prosseguiu: “Acho que me afoguei naquele espelho. Nunca mais quis ver minha face. Seguimos em frente e sem um espelho sequer em nossas vidas [...] Penso que o espelho só serve para nos iludir” (MONTEJANO, 2022, p. 129). 

Maria Teresa diz que passou um bom tempo ponderando aquele relato. Pensou no pesadelo de Narciso, ao ser condenado a apaixonar-se por si mesmo e no sofrimento de sua sogra, que por ter sido iludida, se recusava a encarar um espelho novamente. E, sem nenhuma explicação prévia, impôs o inusitado hábito de nunca ter esse objeto em casa. Mas a contadora de histórias complementa: “O fato é que nós nos acostumamos. O aço da faca, o brilho das panelas e do chão encerado eram nossos espelhos. Ele não nos fazia falta” (MONTEJANO, 2022, p. 132). Ou seja, apesar de não compreender, em momento algum, ela questionou a sua sogra. E como na maioria das tradições, se conformou com aquele hábito e passou a reproduzi-lo, mecanicamente, por todos os anos de sua longa vida. 

A protagonista, então, retoma a palavra e comenta que a sala tinha outros ouvintes, porém todos estavam quietos, ainda impactados pela história narrada pela anfitriã. Por esse motivo, a mulher anônima tenta, em vão, contar outra história, mas todos os seus pensamentos estão concentrados na figura do espelho. Desse modo, o conto apresenta um interessante jogo intertextual, ao citar músicas, textos literários, e, até mesmo, filosóficos que tem o espelho como tema central. Assim, além do referido mito de Narciso, a protagonista cita o conto O Espelho (1882), de Machado de Assis; o poema Retrato (1939), de Cecília Meireles; alguns pressupostos filosóficos de Merleau-Ponty (1999); a canção Dueto (2017), de Chico Buarque, a Bíblia, dentre tantos outros textos. A narradora-personagem fica absorta em seus pensamentos, a tal ponto que se indaga: “Estarei presa em algum espelho? A pausa agora era minha… Não conseguia pensar em nada com nexo. Fiquei atordoada com a quantidade de espelhos que havia em minha existência” (MONTEJANO, 2022, p. 134). 

E prossegue sua reflexão: “Assombrou-me o reflexo do espelho d’água nos olhos de Narciso, a visão confusa da história do espelho da Nona, narrada por dona Maria Teresa e a lembrança dos olhos marejados de Odete, aquela que um dia eu segurei as mãos, lendo seu futuro” (MONTEJANO, 2022, p. 135). Logo a identidade da protagonista é revelada, a mulher anônima é, na verdade, Márcia, a mesma narradora-personagem do conto A Mão e o Espelho, ou seja, O Fio de Prata é uma continuação dessa narrativa. Isso porque Margarida Montejano utiliza a técnica mise en abyme, que de acordo com Garcia (2008), é caracterizada como “elemento de duplicação interior, história dentro da história; é um dos recursos mais eficazes para se obterem coincidências bem construídas. Oferece-se como procedimento retórico válido na produção de interessantes jogos de espelhos dentro da narrativa” (p. 129). 

Por fim, Márcia diz a Maria Teresa que quase não conseguiu dormir naquela noite, por estar pensando no modo como nossas existências são repletas de espelhos. A sábia senhora, então, fez um breve silêncio e, em seguida, falou algo, que aos ouvidos da protagonista pareceu uma síntese do que seria o fio de prata citado em Eclesiastes 12, “em relação à tríade do tempo nascer-viver-morrer” (MONTEJANO, 2022, p. 136): nós devemos zelar pelo intervalo existente entre os dois extremos da vida, pois ele carrega consigo a beleza e as surpresas da existência.

Vale ressaltar ainda que, conforme Alves (2021), a mulher idosa “começa a hesitar, a enfraquecer diante das pressões, não raro sujeitando-se ou anulando-se. É nesse momento, mais do que em qualquer outro, que se mostra importante o ecoar de outras vozes que, juntas, formulem um grito de resistência em seu favor” (p. 06). Nesse sentido, o conto O Fio de Prata (2022), de Margarida Montejano, impõe-se como uma leitura fundamental, ao destacar a personagem Maria Teresa, cujo nome significa “senhora soberana natural de Tera”. Tera é uma ilha grega, que provém do grego ther, que significa “animal selvagem”. Dessa forma, o nome da anfitriã remete às ideias de poder e ancestralidade. É, portanto, uma valorização da mulher envelhecida, e da sabedoria adquirida com o decorrer dos anos.

Conclusão

Nosso ensaio seguiu a lógica do mito grego das Moiras, e, por isso, foram apresentadas as figuras da menina, mulher e idosa, simbolizando, respectivamente, os tempos passado, presente e futuro. As Moiras são uma tríade que traz unidade, assim como as diferentes gerações das personagens de Fio de Prata (2022), de Montejano, refletem a mulher de modo geral. 

A protagonista Eduarda, em Se Não Entender, Pergunte, representa uma subversão dos papéis sociais da menina, ao ter como principal atributo a curiosidade e simbolizar o empoderamento feminino e a igualdade de gênero. O conto A Mão e o Espelho, por sua vez, apresenta, através das histórias entrelaçadas de Márcia e Odete, a importância da sororidade, autonomia e amor-próprio. Por fim, O Fio de Prata, remete às ideias de ancestralidade e poder, por intermédio da personagem Maria Teresa, uma mulher quase centenária, que é símbolo da sabedoria adquirida com o tempo. 

REFERÊNCIAS:

ALVES, Cristiane da Silva. As mulheres velhas (r)existem: algumas notas sobre a velhice feminina e sua presença na Literatura Brasileira do início do século XXI. In: Anuário de Literatura. Florianópolis, v. 26, 2021. 

ASSIS, Machado de. O Espelho [1882]. In: Obra Completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994. 

BUARQUE, Chico. Dueto. Disponível em: <https://bit.ly/3cy80aw>. Acesso em: 24/01/24. 

CHEVALIER, Jean. GHEERBRANT, Alain. Dicionário de Símbolos: mitos, sonhos, costumes, gestos, formas, figuras, cores, números. Rio de Janeiro: José Olympio, 2001.

DALCASTAGNÈ, Regina. Ilusão e referencialidade: tendências da narrativa brasileira contemporânea. Signótica, v. 19, 2007. 

GARCIA, Maria José Ladeira. A mise en abyme em inventário do inútil de Elias José. In: Verbo de Minas: letras. Juiz de Fora, v. 7, n. 13, jan./jun. 2008.

LAJOLO, Marisa. Infância de papel e tinta. In: FREITAS, Marcos Cezar (Org.). História social da infância no Brasil. 7.ed. São Paulo: Cortez, 2009.

LEAL, Tatiane. A invenção da sororidade: sentimentos morais, feminismo e mídia. Tese (Doutorado em Comunicação e Cultura). Escola de Comunicação, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2019.

MEIRELES, Cecília. Retrato [1939]. In: Poesia completa de Cecília Meireles. Organização de Antonio Carlos Secchin. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001. 

MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia da percepção [tradução Carlos Alberto Ribeiro de Moura]. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999.

MONTEJANO, Margarida. Fio de Prata: Contos. São Paulo: Scenarium, 2022. 

PERROT, Michelle. As mulheres ou os silêncios da história. Tradução de Viviane Ribeiro. Bauru, SP: Edusc, 2005.

SOARES, Livia Maria Rosa. CARVALHO, Diógenes Buenos Aires de. A representação da menina e da mulher no conto de fadas moderno: novos destinos em “Além do bastidor” e “A moça tecelã” de Marina Colasanti. In: Revista Signo, vol. 40, n° 68, 2015.

TINOCO, Dandara. Sororidade: substantivo feminino. Matéria do Jornal O Globo. Disponível em: <http://glo.bo/3v5XiOY>. Acesso em: 24/01/24.

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