Um exemplo

Professora doa livros em locais públicos para estimular conhecimento

A história da professora Socorro Sales é, por si só, uma obra que deve ser "eternizada", e, por meio das páginas tradicionais do jornalismo maranhense, ela será registrada

Thiago Bastos / O Estado

Atualizada em 11/10/2022 às 12h16
Em mais uma tarde de trabalho pela educação e cultura, a professora Socorro Sales percorre a Praça Deodoro e distribui livros entre as pessoas
Em mais uma tarde de trabalho pela educação e cultura, a professora Socorro Sales percorre a Praça Deodoro e distribui livros entre as pessoas

São Luís - Em uma tarde comum regrada a sol forte e nuvens carregadas na Grande Ilha, observa-se uma senhora de estatura baixa, com uma sacola em um dos braços com livros. O que poderia aparentar uma cena comum numa cidade em que o ritmo do vai e vem começa a lembrar os bons tempos de capital sem pandemia, é, na verdade, mais um “dia de compromisso com o saber” da personagem desta reportagem.

A O Estado, a professora justifica o porquê da sacola. “Vim para distribuir os meus livros”, disse. Ao ser questionada sobre o tempo em que realiza este trabalho, ela é enfática. “Desde 2019”.

A história da professora Socorro Sales é, por si só, uma obra que deve ser “eternizada” e, por meio das páginas tradicionais do jornalismo maranhense, ela será registrada. Ela é idealizadora do projeto “Leveleiadoe”. Um jogo de palavras que, em três verbos imperativos, determina o que deve ser a dinâmica, ou seja, receba, consuma a obra, e a repasse.

Com uma ideia simples, a professora – que dedicou mais de três décadas em prol da arte do saber – destina livros a quem está em locais públicos, em duas condições: desde que leia e consuma. E ainda desde que repasse as obras para outro indivíduo.

O trabalho da docente começou em 2019, antes da pandemia, quando visualizou a biblioteca de sua casa. “Comecei a olhar o meu acervo de livros e pensei: o que vou fazer com eles?”, disse ao se deparar que havia lido todas as obras de sua estante.

Foi quando, em um dia de ida em um dos inúmeros coletivos na Grande Ilha, a professora teve a ideia de compartilhar suas obras com usuários do transporte público da cidade. “Quando olhei um único jovem decifrando uma obra, disse que poderia voltar a estimular a boa leitura, desde que começasse a compartilhar meu acervo com outras pessoas. Foi o que decidi fazer”, disse.

A ideia genial foi a de deixar livros nos bancos dos coletivos e, claro, esperar pela reação do usuário. A mania começou a ocorrer diariamente. “De fazer esporadicamente, passei a tornar isso como parte de minha rotina. Deu certo e atualmente percebi que posso ter plantado raízes em pessoas que, neste momento, estavam esperando para serem estimuladas através da leitura”, disse.

“A gente trabalha todos os dias, depois chega cansada em casa. Após o momento em que a gente chega cansada, só quer descansar. E a leitura fica para lá, mas com esse livro que ganhei, vou retomar isso aí” Gorete Pereira, vendedora de água

Consolidação do projeto
Ao perceber que a doação espontânea deu certo, a partir da reação positiva da maioria dos usuários que, porventura, se deparam com os livros, seja em um banco de praça ou de ônibus, o projeto “Leveleiadoe” se expandiu ainda em 2019. Foram doados, na ocasião, 1.132 livros frutos não somente do acervo da idealizadora como também de doações de terceiros que passaram a apoiar informalmente o projeto.

Com auxílio de um dos filhos, a professora elaborou um layout com marca do projeto que, rapidamente, ganhou sucesso nas redes sociais. No entanto, a pandemia travou a maior evolução da marca.

Em 2020, até fevereiro – quando começaram a surgir no país os primeiros casos da pandemia do novo coronavírus, o trabalho ainda ocorreu sem qualquer interrupção. Porém, com a disseminação do vírus, a distribuição foi impactada e caiu para pouco mais de 310 obras entre os meses de janeiro e dezembro. Ainda assim, o projeto não cessou e permaneceu vivo. Considerando os dados de 2019 a 2021 (até o primeiro semestre deste ano), foram pouco mais de 1,7 mil livros doados.

Na verdade, a professora não doa somente uma obra. Ela distribui conhecimento e um pouco do seu coração. Feliz de quem recebe uma parte dele.

Gorete Pereira aproveitou para ler uma da sobras oferecidas, entre uma venda e outra de água mineral
Gorete Pereira aproveitou para ler uma da sobras oferecidas, entre uma venda e outra de água mineral

Dos jovens, aos mais simples: todos na arte da leitura no Centro
Em uma tarde simples na Praça Deodoro, região central da cidade, foram distribuídas pouco mais de 20 obras. De livros de arte a românticos, passando por crônicas e livros religiosos e de cunho biográfico, os livros são deixados nos bancos do espaço público e, segundos depois, são observados por usuários comuns e surpresos com o objeto à disposição.

É preciso esclarecer que, antes da distribuição dos livros, os objetos passam por um processo de limpeza e, principalmente, de higienização para evitar quaisquer riscos de contaminação devido ao coronavírus. Após o preparo, as obras vão para a sacola e partem para as “entregas”.

Os contemplados se sentam e curtem, nem que seja por alguns minutos, de um misto de tranquilidade e respeito por uma obra que, de certa forma, auxilia na percepção da visão de mundo e em outros aspectos. Dos jovens, aos mais simples, aos mais antigos. Todos se juntam em busca pelo conhecimento.

É o exemplo simples da vendedora de água, Gorete Pereira. Ela se sentou num dos bancos da Deodoro, após exausta rotina de comercialização de seu produto e decidiu se dar um momento de leitura a partir de uma obra doada pela professora responsável pelo “Leveleiadoe”.

A reação foi imediata. “Na verdade, eu gosto de ler, mas nunca mais tinha tido tempo ou oportunidade. Não esperava descansar aqui no Centro e, de repente, encontrar um livro em uma obra para ler aqui neste momento”, disse.

De origem simples e trabalhadora, a O Estado, a vendedora disse que, por causa da rotina, colocou em segundo plano a leitura. “A gente trabalha todos os dias, depois chega cansada em casa. Após o momento em que a gente chega cansada, só quer descansar. E a leitura fica para lá, mas com esse livro que ganhei, vou retomar isso aí”, disse.

A jovem Eshilly Mirna, de 18 anos – entre um descanso e a ida para a casa, enquanto aguardava por um coletivo no Centro, também recebeu uma obra. Ela disse que a leitura faz parte de sua vida. “Eu gosto de ler obras de ficção e que me agradam. Isso me ajudou nas tarefas escolares e, agora, também auxilia na minha formação superior no curso de Fisioterapia”, afirmou.

Sobre o trabalho da professora, a estudante parabenizou a iniciativa. “Quem dera que todos tivessem essa dedicação para valorizar a educação e o bom saber. Essa senhora poderia estar em casa, descansando. Mas está aqui na praça, preocupada com o saber. Isso é muito bacana”, disse.

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O jovem leitor e internauta
Aos 9 anos de idade, o jovem André Vitor, faz parte do perfil de crianças que encaminham para a pré-adolescência totalmente conectados com os dados repassados pelo mundo virtual. Em tese, ele se enquadra em perfil que não se encaixaria entre leitores assíduos.

Porém, engana-se quem pensa que esta é a tendência. André é destes jovens que ainda entende a importância da leitura direta e eficaz de uma boa obra. Por isso, suas leituras vão desde histórias de ficção a relativos aos games (sua temática preferida).

A inspiração no universo dos jogos virtuais o inspirou, por exemplo, para manter leituras referentes ao tema e para a criação de um canal próprio no YouTube. O canal, feito com o colega Khayrin, aborda jogos e outras temáticas.

Quanto aos livros, o jovem citou o gosto pelo ato. E também recebeu uma obra para aproveitar a tarde no Centro, ao lado da responsável (no caso, a tia dele). “Eu gostei da ideia da professora de distribuir os livros, gostei do livro recebido e espero ler mais obras daqui para frente”, afirmou.

“Eu gosto de ler obras de ficção e que me agradam. Isso me ajudou nas tarefas escolares e, agora, também auxilia na minha formação superior no curso de Fisioterapia” Eshilly Mirna, de 18 anos, estudante

Uma forma de repassar conhecimento
A leitura é, antes de tudo, uma forma de repassar o conhecimento para outros. É a essência, por exemplo, do trabalho de multiplicadores que, com afinco, valorizam o ato de ler como um mecanismo de repasse de informação e fomento da educação.

O costume depende, antes de tudo, de pessoas que se prontifiquem a – quando receberem um simples texto – ler. E, neste caso, a razão e o conteúdo da leitura não são considerados.

“Porque a leitura é a forma de compartilhar conhecimento. Pode-se conhecer culturas, costumes, histórias a partir do que um povo escreve. Além desse aspecto histórico, é importante também considerar o caráter lúdico da leitura, que permite a reflexão e estimula a imaginação”, diz Luís Rodolfo Cabral, professor do Instituto Federal do Maranhão (IFMA) e doutor em Linguística Aplicada e Estudos de Linguagem, assíduo leitor de obras, em especial, de cunho filosófico e de outros campos de conteúdo.

Para o docente, independentemente da obra, é necessário simplesmente não parar de ler. “Encontrei o livro ‘O perigo de uma história única’, de Chimamanda Ngozi Adichie, na praça Gonçalves Dias. Penso que todos devam ler a esse texto, já que se trata de um ensaio sobre estereótipos e preconceito, a partir de casos aparentemente triviais”, afirmou ao se referir à uma obra ou conjunto de informações que se encontrava em local público à disposição.

Leitor aproveita obra entregue pelo projeto Leveleiaedoe, em um ônibus da capital; a ideia é plantar o hábito
Leitor aproveita obra entregue pelo projeto Leveleiaedoe, em um ônibus da capital; a ideia é plantar o hábito

Semeando amor e transformando vidas
Com os recursos tecnológicos e facilidades de plataformas virtuais, trabalhos em grupo que, em tese, dependiam essencialmente do aspecto presencial foram reinventados. Um exemplo disto é o projeto “Semeando amor: Transformação”, da terapeuta ocupacional Conceição Carvalho. Ela – que atuava em dinâmicas com um grupo de cerca de 80 idosos – decidiu reinventar as dinâmicas e usou grupos de WhatsApp para repassar, diariamente, mensagens de reflexão.

Com alusões a conceitos como perseverança e fé, por meio do apego às convicções e personalidades de cada pessoa, a terapeuta repassa, além de mensagens, tarefas e dinâmicas a serem realizadas. “Comecei a mandar atividades para as nossas idosas todos os dias, às sete da manhã. Isso somente começou quando a pandemia veio para mudar a história do mundo. Então, tivemos que nos afastar e, ao mesmo tempo, manter os laços de amizade”, disse.

A contação de histórias é também um exemplo de multiplicação e tentativa de dar um exemplo em um contexto mundano aparentemente desfavorável. “As pessoas ficaram me comunicando tristeza, e precisava juntar a biblioteconomia e a terapia. Esta foi uma forma de unir as minhas duas paixões”, afirmou.

Uma das atividades foi a produção de árvores, seja por desenho simples e registro no papel, com frutos que simbolizavam os sentimentos e pedidos para um mundo mais fraterno. “É uma forma de explorar a criatividade, de manter a autoestima diante de um contexto de vida ainda desfavorável, com tantas notícias ruins”, disse Conceição Carvalho.

SAIBA MAIS

Locais para doação dos livros do Leveleiadoe

  • Livraria Leitura – São Luís Shopping
  • Livraria Leitura – Shopping da Ilha
  • Agência de Turismo “Tô de folga SLZMA” – Endereço: Rua 3, Quadra 6, nº11. Bairro Cohama

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