Acusação

Polônia aperta o cerco contra historiadores do Holocausto

Condenação de dois pesquisadores e interrogatório de jornalista desencadearam protestos de organizações internacionais que investigam a Segunda Guerra Mundial

Atualizada em 11/10/2022 às 12h17
Os nazistas construíram Auschwitz em 1940, e a partir de 1942 o campo foi o maior local de extermínio de judeus
Os nazistas construíram Auschwitz em 1940, e a partir de 1942 o campo foi o maior local de extermínio de judeus (Polônia)

MADRI - A História da Segunda Guerra Mundial na Polônia, especialmente da perseguição aos judeus por seus vizinhos católicos, continua com muitas lacunas sombrias, em especial por ser um campo de pesquisa recente, no qual só foi possível avançar com amplo acesso às testemunhas e documentos após a queda do regime comunista em 1989. No entanto, o governo do partido ultranacionalista Lei e Justiça (PiS), no poder desde 2015, lançou uma ofensiva legislativa contra a investigação independente, culminando, primeiramente, na condenação contra dois pesquisadores, na terça-feira, e no interrogatório de um jornalista pela polícia.

Dois pesquisadores respeitados internacionalmente — Jan Grabowski, professor da Universidade de Ottawa e ganhador do prêmio Yad Vashem por seu trabalho sobre a Shoah, e Barbara Engelking, diretora do Centro Polonês de Pesquisa do Holocausto — foram condenados na terça-feira a retificar um parágrafo de um ensaio de 1.600 páginas intitulado “Noite sem fim: O destino dos judeus na Polônia ocupada”. Eles devem retificar e pedir desculpas para que não paguem uma multa de 22 mil euros pedida pelo autor da ação. Grabowski acredita que a sentença causa enormes danos à investigação do Holocausto.

Nazistas

No livro, eles argumentam que o então prefeito da cidade de Malinowo, no noroeste da Polônia, Edward Malinowski, roubou uma mulher judia que resgatou e entregou aos nazistas o paradeiro de judeus escondidos em uma floresta. Os pesquisadores foram denunciados pela sobrinha do prefeito, Filomena Leszczynska, de 80 anos, que contou com o apoio de entidades ligadas ao Lei e Justiça, como a Liga Polonesa Contra a Difamação e o Instituto Nacional da Memória.

O governo declarou que nada tem a ver com o julgamento, que se apoia em uma lei de 2018 promovida pelo Executivo que condena os “insultos públicos à nação polonesa”, e que foi atenuada após protestos internacionais e um conflito diplomático com Israel.

Paralelamente, a jornalista Katarzyna Markusz, colaboradora do site jewish.pl e que escreve para a Agência Telegráfica Judaica, foi interrogada pela polícia na última quinta-feira por ordem de um promotor de um distrito de Varsóvia. Como a própria Markusz relatou na quarta-feira por e-mail, ela é acusada de insultos contra a nação polonesa por ter escrito o seguinte questionamento em um artigo para a publicação “Krytyka Polityczna”: “Viveremos para ver o dia em que as autoridades polonesas vão admitir que, entre os poloneses, em geral, não houve simpatia pelos judeus e que a participação polonesa no Holocausto é um fato histórico?”

"Quando a polícia me perguntou se eu queria insultar a nação polonesa, assegurei que este artigo não tinha a intenção de insultar ninguém", disse Markusz, de 39 anos. "Houve poloneses que traíram os judeus e outros que os feriram. São fatos históricos. É como se os alemães ficassem furiosos porque alguém escreveu que eles invadiram a Polônia em 1° de setembro de 1939. Posso dizer que me orgulho de ter sido acusada pelo mesmo crime (art. 133 pt. 1 do Código Penal) que o professor Jan Tomasz Gross".Alemanha condena ex-nazista de 93 anos por cumplicidade em mais de 5 mil mortes

Pesquisa

A jornalista se refere ao primeiro caso de destaque da ofensiva ultranacionalista contra a pesquisa histórica na Polônia: Jan T. Gross, que publicou, em 2001, um livro de enorme impacto, “Vizinhos: A destruição da comunidade judaica em Jedwabne, na Polônia”, no qual narrou o massacre de Jedwabne, em 1941, atribuído por décadas aos nazistas, mas que Gross provou ter sido perpetrado por seus vizinhos católicos. Desde então, a bibliografia sobre as perseguições aos judeus pelos poloneses cresceu consideravelmente, e é até mesmo o tema de fundo do filme “Ida”, de Pawel Pawlikowski, que ganhou o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro e foi repudiado pelo governo.

Poucas horas depois do veredicto, Grabowski expressou por telefone, de Varsóvia, onde se encontra atualmente, que “a sentença representa um problema muito sério para todos os historiadores do Holocausto na Polônia, mas também no exterior”. Ele não quis se estender muito em suas respostas, pois seu advogado pretende apelar da sentença, embora tenha destacado que “é uma questão que nunca deveria ter chegado a um tribunal porque não são os tribunais que devem estabelecer o que é verdade ou não em termos históricos”.

Numerosos centros de pesquisa do Holocausto — o Yad Vashem, em Jerusalém, o Centro Simon Wiesenthal, a Fundação do Memorial da Shoah em Paris, a Associação de Estudos Eslavos e do Leste Europeu, a Associação Histórica Americana, a Associação de Estudos Poloneses, com sede em Paris, bem como a comunidade judaica de Varsóvia — mostraram seu apoio público aos historiadores acerca da sentença e consideram, nas palavras da Fundação do Memorial da Shoah, que o processo “representa uma caça às bruxas” que “terá um efeito nocivo no próprio cerne da pesquisa histórica”.

A pesquisadora americana Deborah E. Lipstadt , especialista na negação do Holocausto, escreveu em sua conta no Twitter que a “a Polônia se dedica a negar o Holocausto de uma maneira suave. Não nega o genocídio, apenas reescreve o papel de alguns poloneses nele... E pune os historiadores que dizem a verdade”.

Museu do Holocausto

O Yad Vashem, que, além de ser um museu do Holocausto, também é um dos grandes centros de estudo da Shoah no mundo, divulgou um comunicado nesta quinta-feira, mostrando sua “profunda preocupação” com o veredicto. “A pesquisa histórica deve refletir a realidade complexa de um determinado período, a partir da análise escrupulosa da documentação existente, como tem sido feito neste livro dos dois pesquisadores.

Como todas as pesquisas, este volume sobre o destino dos judeus durante o Holocausto é parte de um debate contínuo e, como tal, está sujeito a críticas na academia, mas não no tribunal. A documentação existente, juntamente com muitas décadas de pesquisa histórica, mostra que, sob a draconiana ocupação nazista alemã da Polônia e apesar do sofrimento generalizado do povo polonês sob essa ocupação, havia poloneses que participaram ativamente na perseguição aos judeus e em seus assassinatos”.

"É claro que o governo polonês quer silenciar historiadores e jornalistas que tentam escrever a verdade sobre o Holocausto: houve poloneses que atacaram judeus durante a guerra. É um fato. Por que estamos sendo perseguidos por dizer isso?",argumenta Katarzyna Markusz.

Grabowski ressalta:

" Esta sentença representa um balde de água fria sobre o que estudantes e historiadores poloneses podem fazer. Estou muito preocupado e muito pessimista", diz o historiador de 57 anos.

Vítimas e algozes

A Polônia foi um dos países que mais sofreu durante a longa noite do terror nazista. Ocupados desde o início do conflito por nazistas e soviéticos, seis milhões de poloneses foram mortos pelo Terceiro Reich, incluindo três milhões de judeus. A Alemanha nazista instalou seis campos de extermínio em seu território, de cuja operação os poloneses não participaram. Além do mais, eles foram vítimas neles: Auschwitz , por exemplo, foi inaugurado como um campo de concentração destinado primeiramente a poloneses e prisioneiros soviéticos. Tampouco existiu colaboração do governo e a resistência foi constante.

A Polônia também é o país do mundo com o maior número de Justos entre as Nações reconhecido pelo Yad Vashem: são 7.112 pessoas que arriscaram ou perderam suas vidas ajudando judeus. Esses são dados que fazem parte do consenso sobre a Segunda Guerra Mundial.

No entanto, sobretudo a partir de 1989, com o fim da ditadura comunista, também é um fato reconhecido por todos os especialistas da Shoah que cidadãos poloneses assassinaram, roubaram, chantagearam, denunciaram e perseguiram judeus durante e após o conflito, e que também colaboraram com os nazistas no assassinato de judeus — não nos campos de extermínio, mas em massacres e fuzilamentos. Milhares de documentos e depoimentos comprovam isso.

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