Comentário

A ''Teoria do Medalhão'' de Machado de Assis e o jovem da atualidade

O escritor Machado de Assis escreveu diversos contos, entre eles, "Teoria do Medalhão", datado de 1881; o texto promove diversas reflexões, como o comportamento do jovem com relação à aparência e essência

Nelson Melo/ De O Estado

Atualizada em 11/10/2022 às 12h21
Machado de Assis tem conto que ainda está atual nos dias de hoje
Machado de Assis tem conto que ainda está atual nos dias de hoje (machado de assis)

SÃO LUÍS- Joaquim Maria Machado de Assis, sem sombra de dúvidas, é um dos maiores escritores de todos os tempos. Nascido no Rio de Janeiro, em 21 de junho de 1839, ele foi revisor de provas de tipografia. Seu primeiro romance foi “Ressurreição”, publicado em 1872. O intelectual também escreveu contos, sendo um deles a “Teoria do Medalhão”. Nesta obra, o autor fornece conotações interessantes, como a prevalência da aparência com relação à essência do ser humano, algo que adquire uma reflexão sartriana. Essa característica é muito frequente entre os jovens, incluindo os adeptos da “vida loka”.

O conto “Teoria do Medalhão” foi publicado em 1881. No ano seguinte, a obra foi incluída no livro “Papéis Avulsos”, onde também está “O Alienista”, texto igualmente espetacular. Os personagens, pai e filho, dialogam sobre ascensão social, durante um jantar em comemoração aos 21 anos do rapaz. O foco da conversa é a conduta humana no que se refere ao prestígio na sociedade, mesmo que o sujeito não mereça esse reconhecimento. Seria uma espécie de “vale tudo” em nome da fama.

O pai oferece várias dicas ao filho, como, por exemplo, manter-se neutro diante dos fatos da vida. Para isso, a inteligência não seria uma virtude, pois o reconhecimento social ocorreria porque a própria sociedade não é exigente, devido ao seu aspecto superficial. Agindo dessa forma, sem se esforçar para ser alguém, o rapaz seria um “medalhão”, isto é, um objeto de desejo, de inveja e de espelhamento para as demais pessoas. O ser e o ter, nesse ponto, seriam meros coadjuvantes em um cenário marcado pela ilusão de uma realidade, que coloca uma capa utópica em cima da verdade.

Dessa questão, podemos resgatar a famosa frase do psicanalista francês Jacques Lacan: a verdade tem estrutura de ficção. E por falar em ficção, seria um contexto observado na série The Walking Dead, na qual os “sussurradores” arrancam as peles dos zumbis e cobrem o próprio corpo com isso, para sobreviverem nas ruas, tendo em vista que não são reconhecidos pelos mortos-vivos. Esse grupo se destaca no meio das hordas, o que é uma vantagem diante dos inimigos, de outras comunidades, que não conseguem detectar um ser humano disfarçado. A aparência faz sentido quando a essência é ocultada em nome de uma vaidade que não tem nada a ver com beleza.

Existem muitos “medalhões” nas sociedades. São pessoas que usam o fingimento para conseguirem sucesso e fama. Em muitos casos, forçam uma inteligência inexistente. Com a predominância da realidade virtual, isso ficou mais comum. Há pessoas que nunca viajaram para fora do país, mas dão dicas nas redes sociais sobre como fazer uma viagem segura pelo mundo. Outras nunca praticaram um exercício físico sequer, mas dão dicas nas redes sociais sobre como aumentar o rendimento na corrida.

O conto de Machado de Assis nos remete ao personagem Castelo, da obra “O homem que sabia javanês”, de Lima Barreto. Ele, na verdade, fingiu que dominava essa língua, para ganhar notoriedade e respeito. Em nossa realidade, fora da literatura, pessoas com essas características podem ser detectadas em vários setores das camadas sociais, nas mais diversas faixas etárias. Isto significa que a linguagem não é mais posterior ao ser, mas simultânea, porque exprimiria uma angústia coletiva e repetida, se a abordagem seguir um pensamento do filósofo Kierkegaard, uma vez que o indivíduo se depara com o absoluto.

O ser humano está perdendo a noção de tudo. O imediatismo é a solução que muitas pessoas encontram para a satisfação de desejos “pré-históricos”, como diria Sigmund Freud com relação à felicidade. Seria algo externamente agradável, mas internamente repugnante. Essa situação pode ser verificada em alguém que, para a população, aparece como um salvador ou redentor, quando, na verdade, não passa de uma farsa, um herói imaginário, que luta contra suas próprias fraquezas, de forma semelhante a Dom Quixote.

O “medalhão” no crime organizado

No crime organizado, o diálogo entre pai e filho, na “Teoria do Medalhão”, também pode ser notado, principalmente, quando um jovem é seduzido para esse ambiente caótico de guerra urbana. O rapaz obedece às “dicas” sobre como ser alguém sem precisar estudar e trabalhar honestamente. O garoto fica impressionado com aquilo e decide se entregar, mesmo que tenha consciência de que sua vida pode ser mais curta do que imagina.

A facção criminosa aumenta suas fileiras por esse mecanismo inconsciente de validação, para que o adolescente se sinta dono de suas decisões. Simultaneamente, uma educação precária que recebeu em casa pela família se despedaça. As partes divididas nunca voltam como se fossem originais. Sempre ocorrem resquícios de marginalidade. Isso se torna evidente quando a ficha criminal é analisada em caso de possibilidade de emprego.

Esse “medalhão” é construído lá atrás, em uma área completamente dominada pelo “pai”, que diz ao “filho” como deve agir para obter status por um caminho que leva à destruição. A ilusão de sucesso é quase um fracasso. A verdade é que quanto menos a pessoa tem conhecimento, mais se torna propícia para acreditar em mentiras. Machado de Assis nos mostrou isso. Se a felicidade é real, a tristeza também é. Portanto, compreender que somos pequenos já é o passo ideal para sermos de fato grandes.

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