Escalada da violência

Com o assassinato de general, aumenta tensão entre EUA e Irã

Conflito recrudesceu depois que Donald Trump abandonou o acordo nuclear firmado por Teerã e as principais potências globais; com a morte de Soleimani, um herói para o establishment da República Islâmica, o conflito atinge um novo e perigoso patamar

Atualizada em 11/10/2022 às 12h21
Manifestante iraniano leva cartaz com a foto de Qassem Soleimani, que dirigia a força de elite da Guarda Revolucionária iraniana
Manifestante iraniano leva cartaz com a foto de Qassem Soleimani, que dirigia a força de elite da Guarda Revolucionária iraniana (AFP)

EUA/TEERÃ - O assassinato pelos Estados Unidos do general iraniano Qassem Soleimani, quando chegava na madrugada de sexta-feira,3, ao aeroporto de Bagdá, marca um ponto de virada na tensão que vem crescendo entre Washington e Teerã desde maio de 2018, quando o presidente americano Donald Trump se retirou unilateralmente do acordo nuclear assinado entre o Irã e as principais potências globais em 2015.

Ao retomar as sanções econômicas contra Teerã, os EUA impuseram ao país persa um prejuízo de US$ 200 bilhões em exportações e investimentos perdidos, segundo disse nesta semana o presidente iraniano, Hassan Rouhani. O acordo, pelo qual o Irã se comprometia a não produzir armas nucleares, tinha como principal efeito normalizar as relações internacionais da República Islâmica, que viveu anos de isolamento imposto pelo Ocidente após a revolução de 1979, que derrubou o xá Rehza Pahlevi e instituiu um regime sui generis, teocrático e republicano.

Até agora, a tensão vinha aparecendo em um conflito de baixa intensidade, com ações iranianas principalmente contra aliados americanos, como a apreensão de um petroleiro britânico no Golfo Pérsico em julho, e ações de aliados dos EUA contra Teerã, como os bombardeios por Israel de forças iranianas na Síria. Com a morte de Soleimani, um herói para o establishment da República Islâmica, o conflito atinge um novo e perigoso patamar.

Embaixada dos EUA

O ataque americano com mísseis aconteceu três dias depois que manifestantes pró-Irã e integrantes das Forças de Mobilização Popular (FMP) iraquianas tentaram invadir a Embaixada dos Estados Unidos em Teerã, em um protesto contra bombardeios americanos que no último domingo mataram 25 integrantes de uma de suas milícias, a Kataib Hezbollah. Os bombardeios, segundo Washington, ocorreram em represália a um ataque desse grupo que matou um funcionário terceirizado em uma base dos EUA na cidade iraquiana de Kirkuk.

As FMP são uma coalizão de grupos xiitas criados a partir de 2014 para combater o Estado Islâmico no Iraque e posteriormente incorporadas às forças de segurança do país. A ofensiva contra o Estado Islâmico também deu origem ao atual acordo militar entre Bagdá e Washington, pelo qual os americanos mantêm no Iraque cerca de 5 mil soldados.

A influência do Irã no Iraque aumentou após a derrubada de Saddam Hussein, um sunita, na invasão americana de 2003, que levou ao poder representantes da maioria xiita iraquiana. Hoje, o primeiro-ministro iraquiano é obrigatoriamente um xiita. A maioria da população iraniana também pertence a esse ramo do islamismo.

Até agora, o governo iraquiano vinha tentando se equilibrar entre os interesses opostos de seus dois principais aliados, mas o ataque americano ao Kataib Hezbollah e agora o assassinato de Soleimani e do vice-comandante das FMP, outra vítima do ataque americano no aeroporto de Bagdá, obrigam o país árabe a escolher um lado.

Ironicamente, a mobilização pró-Irã desta semana aconteceu depois de mais de dois meses de protestos populares contra os serviços precários, o desemprego e a corrupção da classe política iraquiana que desgastaram as facções políticas ligadas a Teerã. Milícias xiitas foram acusadas de reprimir os protestos com violência, e missões diplomáticas iranianas foram atacadas em cidades como Basra e Najaf, no Sul do país.

Duro golpe

A morte do general Qassem Soleimani representou um duro golpe para os iranianos, tanto para as autoridades políticas do regime quanto para a população comum. O carismático comandante das Forças Quds era considerado herói de guerra e também a peça-chave no aparato de segurança, que impedia uma ação direta das potências estrangeiras contra o Irã. Mais do que isso: era um símbolo da resistência. Não à toa, já havia sido descrito como “mártir vivo” pelo aiatolá Ali Khamenei, líder máximo no país.

A designação de mártir carrega um simbolismo profundamente enraizado no Irã e no xiismo, vertente do islamismo praticada no país. Todos os 11 líderes xiitas, os chamados imãs, descendentes diretos do profeta Maomé, foram assassinados ao longo da história. Paira portanto nessa divisão do islamismo um sentimento de injustiça e sofrimento, que valoriza as vozes que se levantam contra a opressão dos poderosos. Tanto que, na mais notória celebração religiosa, a Ashura, os iranianos param anualmente por dias seguidos para lembrar e representar o martírio do imã Hussein, que morreu com dezenas de companheiros, enfrentando os milhares de soldados do imperador Iazd na batalha da Karbala.

Portanto, ao descrevê-lo como “mártir vivo”, Khamenei colocou Soleimani praticamente no mesmo patamar dos que caíram no campo de batalha, inclusive os históricos líderes xiitas. Trouxe um pouco de misticismo para uma figura já respeitada por seus feitos militares, por sua alegada incorruptibilidade e por sua dedicação à República Islâmica. Em outra grande manifestação de desagravo, Khamenei concedeu ao militar, em março do ano passado, a medalha da Ordem de Zolfaqar, a mais alta honraria do país, que foi entregue pela primeira vez a um oficial militar desde a revolução de 1979.

Quem é

Qassem Soleimani nasceu em 1957, em Qanat-e Malek, no sudeste do Irã, mas mudou-se ainda pequeno para Kerman, capital da província de mesmo nome. Passou parte da adolescência trabalhando na construção civil. Nesta sexta-feira, as ruas da cidade foram tomadas por uma multidão vestida de preto e segurando cartazes com a foto do general.

Após a Revolução Iraniana, Soleimani entrou para a recém criada Guarda Revolucionária, instituição que passou a dividir com as tradicionais forças armadas a responsabilidade pela segurança do país e do regime. Comandou a importante 41ª divisão durante a Guerra Irã-Iraque (1980-1988), que participou de operações de destaque no conflito e que depois foi responsável por defender com sucesso a fronteira oriental do país.

Soleimani continuou a ascender nos rankings da Guarda Revolucionária depois da guerra e, em 1998, foi escolhido para comandar a Forças Quds. Essa unidade, ao lados dos Basijs, constituem os dois pilares da Guarda Revolucionária. Enquanto os Basijs atuam internamente, como uma milícia que garante a unidade do regime, persegue opositores e resguarda a aplicação da cultura islâmica, a Força Quds, consideradas de elite, atuam predominantemente no exterior. Teoricamente, operam na proteção da população islâmica e xiita. A palavra Quds, por exemplo, significa Jerusalém, que seria o foco inicial de atuação da unidade.

Sob seu comando, as Forças Quds estabeleceram um emaranhado de alianças e passaram a atuar em diversos países no Oriente Médio. O Irã passou a apoiar com dinheiro, treinamento militar e, eventualmente, com seus próprios soldados, os houthis no Iêmen; o Hezbollah, no Líbano; e milícias xiitas na Síria e no Iraque. O próprio general era responsável pelas negociações com os líderes locais, além de ir a campo para treinar e, em alguns casos, lutar ao lado das milícias. Entre fatos e mitos, um general iraniano declarou há cinco anos que o próprio Soleimani, com outros 70 homens, deteve o avanço do Estado Islâmico em Erbil, no Iraque. Coincidentemente, 70 era o número de companheiros que morreram com o imã Hussein na batalha de Karbala.

"Esses dois homens (Soleimani e Abu Mahdi al-Muhandis, líder das Forças de Mobilização Popular iraquianas, também morto no ataque dos Estados Unidos) lideraram as forças que derrotaram o Estado Islâmico no Iraque. E o mesmo vale para a Síria: o general Soleimani ajudou a barrar o avanço das forças terroristas que eram apoiadas pela Arábia Saudita. Se não fosse por ele, bandeiras pretas [símbolo do EI] estariam erguidas em Damasco, Bagdá e em outras capitais", disse Mohammad Marandí, analista político e professor da Universidade de Teerã.

Soleimani na política

O fortalecimento desses grupos locais resultou no aumento da influência de Teerã nos países onde eles atuam. Recentemente, o site Intercept publicou uma série de reportagens com documentos vazados da inteligência iraniana e iraquiana que mostram a atuação pessoal do general Soleimani na política do Iraque. Em um golpe de mestre, o general aproveitou a rede de espionagem montada pelos Estados Unidos – e que ficou abandonada com a retirada americana do país – para garantir proeminência na política local e consolidar assim um importante aliado regional.

Dentre outros benefícios, essa rede de alianças transformou em praticamente inviável o ataque direto de uma grande potência ao Irã, mesmo possuindo enorme vantagem militar. Isso porque uma ação contra Teerã desencadearia a reação dos aliados iranianos — os chamados “proxies”, ou procuradores — em diversos países, afundando em crise toda a região do Oriente Médio. Provavelmente não deixariam de ser atingidos os parceiros dos Estados Unidos, notadamente Israel e Arábia Saudita, assim como os interesses comerciais do mundo ocidental seriam afetados, principalmente o fornecimento de petróleo.

"Além de aumentar sua influência na região, o Irã tem usado pelos últimos 20 anos suas alianças como poder de dissuasão contra ataques dos Estados Unidos e de Israel", afirmou Hamed Mousavi, professor de ciências políticas da Universidade de Teerã.

Considerando seus feitos como comandante das Forças Quds e sua popularidade entre os iranianos, surpreendeu a alguns que Soleimani não tenha sido escolhido como novo comandante da Guarda Revolucionária do Irã, em abril do ano passado. Na ocasião, no entanto, analistas ressaltaram que sua importância era evidente independentemente do cargo que ocupava. Ele já era considerado no Ocidente a segunda pessoa mais importante do Irã, atrás apenas do líder supremo Ali Khamenei.

Veja a cronologia dos fatos:

Sexta-feira, 27 de dezembro

- Uma base militar de aliados dos EUA no Iraque foi atacada com mais de 30 mísseis. Um americano que não era do exército, mas que prestava serviços para as forças armadas, foi morto. Outros quatro americanos e dois iraquianos ficaram feridos.

- Os EUA apontaram como culpada uma milícia chamada Kataib Hezbollah, apoiada pelo Irã.

Domingo, 29 de dezembro

- Os americanos realizaram ataques em resposta e mataram 24 pessoas em bases de milícias no Iraque e na Síria.

- Essas milícias iraquianas apoiadas pelo Irã são uma força importante: elas têm um grande número de representantes no Parlamento do Iraque.

- Elas atuam no Iraque, mas são financiadas e orientadas pelo Irã. Quando os EUA impõem sanções aos iranianos, essas organizações reagem com ataques no Iraque, onde há presença de americanos.

Terça-feira, 31 de dezembro

- Membros dessas milícias invadiram o perímetro da embaixada dos EUA em Bagdá, a capital do Iraque. Na ocasião, Trump acusou os iranianos de estarem por trás dos protestos.

- A embaixada ficou sitiada por pouco mais de 24 horas. Os líderes das milícias pediram para que ela fosse liberada na quinta-feira (2), e a ordem foi imediatamente cumprida.

Quinta-feira, 2 de janeiro

- Os EUA executaram o ataque por drones pela noite no aeroporto de Bagdá, no Iraque, que matou Soleimani.

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