ESPECIAL / Batalha histórica

E as razões para a vitória? O lado racional e religioso do "milagre"

Fatores ligados a aspectos naturais e católicos são citados para justificar a improvável vitória lusa no conflito; alta variação da maré e a inexperiência dos membros silvícolas vindos com a França foram preponderantes

Thiago Bastos / O Estado

Atualizada em 11/10/2022 às 12h22
Quadro, de autor desconhecido, retrata a luta entre portugueses e franceses e o milagre de Guaxenduba
Quadro, de autor desconhecido, retrata a luta entre portugueses e franceses e o milagre de Guaxenduba

Nossa Senhora e a Batalha de Guaxenduba

Historiadores se debruçaram sobre os aspectos físicos e psicológicos do confronto; o “milagre” é um fato criado para explicar o que não tem explicação

A conhecida batalha de Guaxenduba é destas marcas históricas que até hoje suscitam curiosidades e, até mesmo, dúvidas entre os pesquisadores em geral. Além de se entender o porquê da “ingenuidade” francesa que popularmente foi “de peito aberto” para tentar derrotar os portugueses, desconsiderando toda a vivacidade lusa neste tipo de confronto, muitas indagações pairavam sob o seguinte fato matemático: como uma tropa reduzida derrotou em uma batalha um adversário tão poderoso e com “armas de última geração”?

Para responder a estes e outros questionamentos, historiadores se debruçaram sobre os aspectos físicos e psicológicos do confronto. Mas há um fator considerado que foi montado anos após o conflito e, até os dias atuais, pairam nas mentes dos curiosos no assunto: o chamado “milagre de Guaxenduba” é destes fatos criados para explicar o que foge, até então, dos limites lógicos e de uma verdade palpável.

A explicação é construída a partir de uma proximidade lusa com tradição católica. No entanto, com outras sociedades também de referenciais cristãos, o milagre se apregoou quase como um fato único, absoluto e irrefutável. De acordo com o milagre, ao ver o “seu povo” acuado até então pelas forças francesas, Nossa Senhora teria feito uma aparição na orla da Praia de Santa Maria para transformar areia em pólvora.

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Desta forma, os portugueses ganharam uma espécie de “sobrevida”. Fortalecidos, receberam uma dose de coragem e conseguiram se sobrepor às forças francesas. “Com esta lacuna racional para explicar esta reviravolta no conflito, veio à tona esta explicação, que, de certa forma, ajuda a explicar em termos religiosos o que ocorreu”, disse Euges Lima, vice-presidente do Instituto Histórico e Geográfico do Maranhão (IHGM).

A tese é, obviamente, corroborada por autoridades ligadas ao catolicismo. Em artigo publicado no dia 23 de novembro de 2014 por O Estado, o padre João Dias Rezende Filho escreve que “Maria Santíssima costuma aparecer em épocas de crise. Basta lembrar uma das mais recentes aparições, em Fátima, Portugal, no conturbado início do século XX”.
Segundo ele, “Nossa Senhora costuma trazer uma mensagem simples e, ao mesmo tempo, profunda: pede-nos que rezemos, que procuremos evitar conflitos fratricidas, em última instância, que volvamos os nossos corações para Deus”, escreveu.

Explicação defendida há vários séculos
O jornal “Pacotilha”, de 21 de novembro de 1917, frisa os 303 anos até então da Batalha de Guaxenduba em artigo publicado. Nele, é possível ver a descrição de João Lisboa, com base no relato sob registro em “Estatística histórico-geográfica do Maranhão”. Na citação, há uma interpretação dúbia entre o que seria a Baía de São José (usada em tese pelas tropas francesas até se encontrarem com as forças portuguesas na Praia de Santa Maria) e a de Anajatuba. Alguns entendem que as citações se referem ao mes­mo ponto geográfico e outros divergem.

De acordo com o periódico, as tropas francesas contavam com sete navios e 46 canoas grandes e, segundo o jornal, a batalha “decidiu os rumos da pátria”. Por fim, o artigo descrito cita que “os luso-maranhenses, que repeliram duas invasões estrangeiras, têm bastantes motivos para se ufanar dêsses feitos gloriosos, deveras inesquecíveis”.

ARTE DE UM MILAGRE

O milagre de Guaxenbuba: as lembranças na cidade em forma de escultura do artista Dovera da batalha
Quem passa diariamente pela Avenida Jerônimo de Albuquerque, na entrada do bairro Vinhais, nem costuma perceber a presença do monumento que simboliza o chamado “milagre de Guaxenduba”. Trata-se de uma passagem que retrata a aparição de Nossa Senhora da Vitória no campo de batalha travado por portugueses e franceses, em 1615. De acordo com a versão aceita especialmente pela comunidade católica, a santa teria aparecido no meio da batalha para acudir os portugueses, em minoria e com munição escassa. O monumento acima é de Luigi Dovera, um ex-frade italiano, natural da região de Milano, que casou-se com uma maranhense desejando fugir dos horrores de sua terra natal. Aqui, estabeleceu-se com o trabalho de escultor, e grande parte de sua obra pode ser vista por ruas e avenidas de São Luís. Na década de 1960, segundo os familiares, Dovera recebe convite do então governador do estado, José Sarney, para liderar o projeto de restauração do Palácio dos Leões. De acordo com familiares, o convite foi feito em 1966, que seria o primeiro ano da gestão de Sarney.

A influência católica na cidade e na formação cidadã de Dovera o levaram – também influenciado pelo poder público – a desenvolver uma peça que retratasse a passagem importante para a consumação dos ideais da religião. O italiano decidiu produzir uma peça especificamente sobre a passagem histórica. Retratando Jerônimo de Albuquerque e Nossa Senhora ao lado de um canhão de batalha, o artista montou a peça fixada na rotatória da via do mesmo nome do herói português.

A passagem de tempo e a ausência de manutenção fizeram com que o monumento também sofresse com os sinais claros de desgaste. As peças – fixadas sob uma estrutura de pedra – estão enferrujadas e as mãos da santa não estão mais fixadas no corpo da homenageada.

E O PÓS-BATALHA?

Ao contabilizar o saldo (neste caso, prejudicial) da batalha de Guaxenduba, os franceses enumeraram as perdas de homens, definiram como errônea a estratégia adotada (se é que houve alguma) e decidiram basicamente se aproximar do inimigo. O artigo intitulado “Franceses e Tupinambás no Maranhão”, de Euges Lima, cita que, “diante de tal derrota”, La Ravardière, em vez de partir para um novo ataque, optou por troca de correspondências com quem o derrotou, neste caso, Jerônimo de Albuquerque.

Um ano após o confronto, em 1615, foi formalizado um acordo de trégua entre as partes. Na ocasião, foram enviados emissários de ambas as partes para consultar quem ficaria com o Maranhão. A trégua aparente terminou com a intervenção de Alexandre de Moura, com patente de capitão-mor para concluir o trabalho de Jerônimo de Albuquerque e, desta forma, expulsar em definitivo os franceses do estado. Mesmo pós-batalha, alguns membros dos países permaneceram no território maranhense na “esperança” de que a França ainda dominaria a região. Era o desfecho negativo do projeto “França Equinocial”, iniciado até então em 1612 e que terminou mediante a falta de recursos. Uma das explicações para a ausência de interesse na causa foi o casamento de Luís XIII com Ana d´Áustria, filha do rei espanhol Filipe III, em 1612. O governo espanhol teve gerência na política externa francesa o que enxugou a atenção da Espanha no Maranhão.

AVENIDA GUAXENDUBA OU KENNEDY

Uma peculiar “confusão” no pensamento popular ludovicense é em referência à Avenida Guaxenduba. Com aproximadamente 3 quilômetros de extensão e iniciando no fim da Avenida Alexandre de Moura à intersecção com a Avenida São Marçal, no João Paulo, a via (rodeada por vários estabelecimentos comerciais de alimentos e manutenção de veículos) é conhecida também como Avenida Kennedy. A dúbia referência nominal causa situações peculiares e, de forma simultânea, transtornos e até constrangimentos a moradores e trabalhadores do entorno da via. As correspondências, por exemplo, chegam até as residências com os dois nomes.

“Eu tenho conta de luz com referência na Avenida Kennedy e conta de água com Avenida Guaxenduba”, disse Adma Santos, moradora da via há quatro décadas. Para ela, a sua residência fica na Avenida Kennedy. “Quando cheguei aqui, poucos falavam em Guaxenduba. Na verdade, nem sei direito o que significa a palavra”, disse ao demonstrar desconhecimento acerca do fato histórico.

Apenas uma padaria e uma funerária vinculam seus endereços na via ao nome do confronto histórico. Não há explicação lógica e oficial para a dualidade. No cotidiano, instituições em geral lembram da via das duas formas.

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