Especial / O Estado

Vida de pescador: influência da lua, fé no pedido e amor ao ofício em Raposa

Para viver da pesca, é necessário – além de habilidade com a embarcação – contar com a bênção de Deus e os fatores favoráveis; comunidade em Raposa faz da pesca sua vida

Thiago Bastos / O Estado

Atualizada em 11/10/2022 às 12h23

[e-s001]O ofício da pesca é um dos mais antigos de todo o mundo e remonta aos períodos anteriores ao nascimento de Cristo, quando os homens desbravaram os mares em busca de fontes de renda e alimentação. Em algumas sociedades, o hábito de pescar não somente foi responsável pelo desenvolvimento da economia como pautou a culinária e outras tradições.
Em regiões brasileiras, o costume da pesca ainda é valorizado, assim como ocorre na Raposa, município brasileiro do estado do Maranhão, que localiza-se na microrregião da aglomeração urbana de São Luís, mesorregião do norte maranhense.

Mas, para dominar a arte da pescaria, é necessário - além de “não se deixar” dominar pelo mar e ter noções do comando das embarcações – ter fé e amor ao que faz. Alguns pescadores entrevistados por O Estado atestam que exercem a função há quatro décadas e dizem que somente com ajuda divina foi possível sobreviver a tantas intempéries enfrentadas nas águas e ausência de cardumes em alguns períodos.

Outro fator apontado pelos pescadores é o entendimento de que as fases da lua e suas “influências” nas condições de vento e até de temperatura, segundo eles, ditam quando haverá mais ou menos peixe. Para os pescadores, as luas em quarto crescente e em quarto minguante são as ideais para se buscar nas águas os cardumes que ajudarão a “engordar” o orçamento das famílias que vivem da atividade.

Não há um pescador que ainda não tenha enfrentado um naufrágio ou uma situação de risco à vida durante uma missão nas águas do litoral maranhense e de outros estados. “Caboclo tem que lutar até encostar. Nadei um dia e uma noi­te até chegar numa terra firme. Foi um sufoco”, disse Manoel Ribeiro do Nascimento, pescador com 53 anos de idade e que, ao ajudar o pai desde cedo, atua na pesca des­de os 8 anos.

Ele – que trabalha de “parceiro” ou auxiliar do “mestre” na embarcação – disse que até hoje ainda sente certo medo ao ir para a água. Mas que, no caso dele, não há escolha. “A gente precisa sobreviver, não sei fazer outra coisa”, disse. Ao retornar, dependendo do volume que fora pescado, por ida para a água, o “parceiro” ganha de R$ 100,00 a R$ 400,00. Como é uma viagem, em média, por uma semana, o valor arrecadado por um pescador auxiliar não ultrapassa por R$ 1,5 mil.

Por causa do perigo das águas, seu Manoel Antônio Cabral, deixou de ser pescador do tipo “embarca­do” para virar pescador de “beira”. Atualmente, ele compra no cais somente para revender. “Eu percorri essas águas aí durante 25 anos. Muito tempo arriscando a minha vida. O bom pescador ele tem que saber que ele pode ir para a água, mas pode não voltar. En­tão, a família dele tem que estar preparada para tudo”, afirmou.

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Além de virar revendedor, com o dinheiro guardado durante o tempo em que seu Manoel era pescador de mar, conseguiu abrir um ateliê para venda de produtos artesanais na Raposa e adquiriu uma residência. “Com certeza, foi difícil, mas não me arrependo. Graças a Deus estou aqui para contar essas histórias”, afirmou.

Pescador há 35 anos, Evilásio Saldanha chegou a permanecer por quase um mês somente no mar. “Neste caso, não foi proble­ma não. Pelo contrário, foi pra trazer mais peixe mesmo”, disse. Nesta missão, o pescador transportou com outros três colegas quase cinco toneladas de gelo, além de enormes cardumes na volta. “Quando se trabalha muito, também se ganha bem”, afirmou.

O caso de Anastácio Santos é ainda mais impressionante. Ele completou 60 anos de idade em 2019 e, desde os 10 anos, trabalha como pescador. “E nem penso em parar! Pelo contrário. Cheguei a passar também até um mês somente na água. Tudo por causa do amor ao que faço e também, claro, por necessidade”, disse.

Antes da missão
O Estado
se encontrou com pescadores em Raposa na quinta-feira, 29, horas antes de mais uma missão nas águas em busca de peixe. Antes da viagem – que deverá se estender até o início deste mês de setembro –, são fundamentais o preparo das redes, a verificação do motor e outras instalações e a colocação de óleo novo na estrutura mecânica da embarcação. “Só nun­ca aconteceu nada com a gen­te com a ajuda de Deus e, principalmente, pela gente não deixar passar nenhum problema”, disse Evilásio Saldanha.

SAIBA MAIS

[e-s001]Mangue seco - “comunidade” que surgiu da pesca na região de Raposa

Em meados da década de 1970, alguns pescadores do Olho d´Água e outros bairros começaram diariamente a seguir do bairro até o Pucal (entre Raposa e o Araçagi) para desbravar o maré tortuoso do litoral maranhense. À época, a faixa de praia e o caminho que cortava a área de manguezal existente ali não registravam qualquer moradia. Atualmente, é possível ver a alguns quilômetros da sede administrativa de Raposa um pequeno conjunto de casas denominado informalmente de Mangue Seco, que nomeia uma praia na região considerada uma das rotas mais alternativas do turismo local.
A maioria das casas fincadas entre as vegetações de mangue foi feita por pessoas que, até hoje, utilizam a pesca como meio de sobrevivência. De acordo com levantamento local, cerca de 50 famílias vivem na localidade e no entorno dela, esperando pela cheia da maré para pescarem.
Um dos pescadores mais antigos da “comunidade” Mangue Seco é Cláudio Nunes Santos, o “Sururu”. Ele tem uma pequena casa fincada no meio da lama e, ao lado, está a canoa. “Tô só no aguardo da subida da maré para voltar para a água”, disse. A maré, aliás, chega até os pés do casebre de “Sururu”.
Mas o morador mais influente do Mangue Seco é seu Raimundo Lourenço. Sem apelido, ele mora em uma residência no caminho do manguezal para a faixa de areia. Ao voltar da água, seu Raimundo precisa arrumar a pitiuzeira (rede própria dos pescadores) formada por fios de nylon, na maior parte dos casos, pelo chumbo (para arrastar a rede) e pelas boias (para o equilíbrio da rede na água).
Ele explica que a rede é usada para pegar tainha e camarão. “Antes eu fazia a pesca mais embarcada, mas hoje estou mais sossegado e pego peixe mesmo só para comer”, disse. Para sobreviver, o pescador precisou contribuir e, atualmente, recebe um valor de benefício pela Colônia de Pescadores da região de Raposa

A gestão da atividade: a Colônia de Pescadores

Instituída em 1997 e reformada no ano passado em ato de entrega que contou com a presença do então ministro do Meio Ambiente, Sarney Filho, e outras autoridades, a Colônia de Pescadores Z-53, de Raposa, registra no momento (entre ativos, inativos, falecidos, inadimplentes e transferidos) cerca de 6,5 mil associados. A entidade é o canal para que, por exemplo, o pescador da região requeira por exemplo o benefício da aposentadoria.
Para ter acesso a ele, o pescador recebe (com a legislação ainda vigente) algumas “regalias” pela especificidade da função.

O profissional é enquadrado, neste caso, como segurado especial, o que gera a diminuição da idade mínima para o requerimento da aposentadoria (55 anos de idade no caso das mulheres e 60 anos de idade no caso dos homens). Tanto o pescador feminino quanto o masculino precisam contribuir, ainda com a regra atual previdenciária, por 15 anos.
Para facilitar o requerimento, análise e possível aprovação do benefício, este ano, a Colônia viabilizou a integração entre o banco de dados da entidade e do INSS, responsável pela vantagem da aposentadoria. “Isso torna o processo mais rápido, agilizando o atendimento para nosso associado”, disse o funcionário do setor administrativo da Colônia de Pescadores da Raposa, Luan Martins. Além da aposentadoria, a Colônia também busca integrar o associado à sua sede física, situada na avenida principal do município com a oferta de serviços nas áreas de oftalmologia e odontologia. Dependendo do caso, o (a) associado (a) ainda pode usufruir das áreas sociais para a promoção de eventos e outras atividades.

Quanto à reforma, do ano passado, foram recuperados a área de atendimento (com computadores de última geração) e climatização de praticamente todos os espaços internos. “Não poderia deixar de estar presente num momento como esse importante ao pescador de Raposa, principalmente após assinarmos uma portaria técnica, não política, no ministério que aumentou o tempo do defeso do camarão. Essa foi uma maneira de valorizar o pescador artesanal, inclusive os de Raposa”, comentou Sarney Filho à época da entrega da reforma da entidade, no dia 20 de janeiro do ano passado.

A arraia gigante e o tubarão feroz: histórias de pescador do capitão Carlos

Sentado em uma cadeira em uma praça na Raposa, estava seu Carlos Araújo de Sousa, um senhor de 73 anos de idade e que há 43 anos mora na localidade. Ele lembrava novamente sobre o tal dia em que, ao navegar pelo litoral maranhense, se deparou com uma “mancha” na água de 20 metros. “Eu olhei e achei que era óleo, alguma coisa diferente. Meu amigo, era uma arraia de uns bons metros! Nunca tinha visto tão grande”, disse.

Ele contou que chegou ao Maranhão vindo de Maranguape (CE) ainda na década de 1960 e passou por várias cidades antes de chegar na Raposa. “Eu era um ótimo capitão, andei por muitos mares e agora estou no meu sossego na minha linda cidade”, afirmou.

A história da arraia gigante convence a maioria dos que a ouvem. Mas, quando o capitão Carlos conta o dia em que foi mordido por um tubarão, poucos acreditam. Para comprovar, ele mostra a marca de cicatrizes que seriam resultados de mordidas na perna direita do tal tubarão. “Foi numa missão na costa brasileira, não me lembro mais onde. Caí na água depois de uma onda e só senti a doída na perna. Quando vi, era um tubarão gigante bem do meu lado e, mesmo com ele respirando na minha nuca, nadei até a embarcação de novo e escapei”, comentou.

Saiba mais sobre a Raposa

O nome da Raposa surgiu, de acordo com os mais antigos, a partir da grande quantidade deste tipo de animal na região que, ao saírem das regiões mais densas de vegetação para se secarem ao sol, aproveitavam para “fazer um lanche” com os peixes deixados pelos primeiros pescadores a beira do mar após a pescaria.

De acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a população – estimada em 2010 – do município é de aproximadamente 26.350 pessoas. Com cerca de 64 km² e situada a 28 quilômetros do centro de São Luís, a Raposa tem o seu surgimento atrelado à década de 1950, quando pescadores cearenses vindos, em sua maioria, do município de Acaraú, começaram a desembarcar na região para viver.

A partir disso, os moradores vindos do Ceará passaram a desenvolver a pesca e a produção de rendas como principais atividades de fomento econômico. Na década de 1960, mais especificamente em 1964 – foi construído o primeiro acesso rodoviário à região. Com isso, houve uma mudança total na configuração da localidade que, de pequenas palafitas, passou a apresentar moradias mais complexas que, em vários casos, se transformaram em lojas de artesanato com produtos típicos, como toalhas de mesa, panos de prato, saídas de praia, dentre outros.

Com a chegada dos anos 1990, o município da Raposa passou a explorar com mais ênfase os serviços de turismo, especialmente nas ilhas de Carimã e Curupu, próximas à região. A primeira, inclusive, é mais visitada por registrar dunas semelhantes aos Lençóis Maranhenses. Por essa razão, são chamadas de “Fronhas Maranhenses”.

Benefício - o seguro-defeso

Para a preservação das espécies, o Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) prevê o recebimento do seguro-defeso, um benefício pago ao pescador profissional e artesanal devido à paralisação das suas atividades. A garantia da vantagem é dada, de acordo com dados do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, pela Lei nº10.779, de 25 de novembro de 2003, cuja regra fora alterada pela Lei nº 13.134, de 14 de junho de 2015.

De acordo com o INSS, o benefício é compatível com um salário mínimo mensal. Recentemente, o Governo Federal anunciou revisão nas condições dos beneficiários, para saber se, de fato, os cidadãos têm direito de receber o valor. Segundo o órgão federal, para requerer o benefício, é imprescindível apresentar um documento de identificação oficial, o comprovante de inscrição no Cadastro de Pessoa Física (CPF), a inscrição no Registro Geral da Pesca (RGP) na condição de pescador profissional artesanal que exerça a pesca como atividade exclusiva, além de cópia do documento fiscal de venda do pescado e comprovante de residência em município abrangido pelo ato que instituiu o período de defeso relativo ao benefício.

NÚMEROS

26.350 pessoas é a população atual estimada da Raposa
64 km² é a dimensão do município
6,5 mil associados na Colônia de Pescadores da Raposa
R$ 400,00 é o valor máximo recebido por um “parceiro” de pesca em uma ida para a água

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