Artigo

Onde os abusos viram leis

Atualizada em 11/10/2022 às 12h23

Há por aí um país em que puta goza, gigolô tem ciúme, traficante fuma maconha e comunista é de direita. Por mais que muita gente não saiba, ou finja não saber disso para não ter que pensar a respeito, esse país é o nosso Brasil e precisou ser definido dessa forma no século passado pelo sagaz e irreverente cantor Tim Maia para que pela primeira vez nos déssemos conta do quanto é, frequentemente, bizarro, afrontoso e absurdo viver neste país em que vivemos.

E olha que em termos de gigantismo do absurdo o que disse o cantor é muito pouco diante do que se vê até hoje! Tivesse um pouco mais de requinte Tim Maia teria complementado: e em que puta goza, é artista de cinema e pastora de igreja; em que comunista é de direita, milita no Centrão e tem filho de esquerda; em que traficante fuma maconha, se elege com cocaína e dá festa com ecstazy; em que gigolô tem ciúme, casa com artista e vira celebridade.

Sem contar que tantos anos depois que Tim Maia se foi, os absurdos evoluíram a ponto de o Brasil ser hoje também um país em que bandido tira férias, jogador de time grande morre queimado em centro de treinamento, mala entupida de dinheiro não tem dono e ateu reza pra Deus, pra Exu, pra Buda e para Maomé. É mole ou quer mais?

Pior é que tem. Quando no século passado um senador da República disse que esta era uma Nação feita por bandidos para bandidos não previu que as gerações seguintes fariam tudo para sacramentar o que ele disse. Bote-se, pois, na conta dessa estranha vocação para o absurdo (para não se atribuir a coisa pior) a lei recentemente criada para proteger bandidos intitulada Lei do Abuso da Autoridade, segundo a qual não se deve punir o bandido, mas sim aquele que o prende, enquanto estabelece que é abuso de autoridade prender o bandido, mas não soltá-lo. Nada mal para um país em que a primeira assembleia constituinte reuniu-se numa antiga cadeia pública. Faz sentido, ou não?

Pobre Tim Maia!, não viveu a ponto de ver sua irônica frase aperfeiçoada com tanto esmero. Não chegou a ver figuras como Renan Calheiros e Gilmar Mendes, estabelecidos como representantes do povo, e, portanto, devendo ser guardiões da moralidade, saltitando de felicidade com a nova lei, da mesma forma com que traficantes e meliantes vibram por viver em um país que reserva sempre uma absurda cota de leniência para criminosos de todo tipo, principalmente os corruptos.

A revolta do povo com essa tal lei está dando tanto o que falar que escutei, em uma livraria, uma conversa de um grupo de idosos na qual um deles ponderou que ainda bem que não havia a tal Lei do Abuso da Autoridade na época de Jesus Cristo. Senão ele teria sido preso por abuso da autoridade ao expulsar a chicotadas os vendilhões do templo, comerciantes corruptos que usavam a Igreja local para enriquecimento fácil.

Impulsivamente, dei asas à minha imaginação para conceber a cena. Os acólitos dos infratores afrontando Jesus Cristo após os criminosos terem sido enxotados.

- Com que autoridade fazes essas coisas?

- Sou filho de Deus, não posso ver maculada sua santa casa.

- Tem provas disso?

- Não? Não preciso de provas.

- Considere-se preso então, por abuso de autoridade.

José Ewerton Neto

Autor de O ABC bem humorado de São Luís

E-mail: ewerton.neto@hotmail.com

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