Casarões de São Luís

Casarões guardam histórias de rebeldia e lendas trágicas

Um dos maiores escritores da era romântica do país, Aluísio Azevedo iniciou a sua história em um imóvel que quase foi demolido para virar estacionamento; o Palácio das Lágrimas passa por reformas em obra do Iphan

Thiago Bastos / O Estado

Atualizada em 11/10/2022 às 12h28

[e-s001]Um dos imóveis que carrega a maior tradição literária da cidade é o casarão onde viveu por vários anos, com outros quatro irmãos (além da mãe e do pai, um vice-cônsul português), o escritor Aluísio Azevedo. O imóvel, que atualmente está em fase de restauração por intermédio do Poder Judiciário, está localizado na Rua do Sol, nº 567. A casa foi o segundo imóvel de Aluísio e, sem dúvida, o mais marcante para a vida dele.

Pelo fato de a mãe de Aluísio (Emília Branco) não ser casada, a sociedade a recriminava, já que não era admitido na época – século XIX – que uma mulher vivesse com um homem sem ser casada. Com vergonha, a mãe de Aluísio sequer colocava a cara na porta de casa, como é citado pela escritora Ceres Fernandes.

Vendo a situação da mãe e indignado com o que ele chamava de “a hipocrisia da sociedade”, Aluísio resolve escrever – do mirante, que ainda é possível ser visto no imóvel onde morou, no Centro – a sua obra mais importante, “O Mulato”, obra de grande destaque no romantismo literário. “Sem dúvida, a situação vivida pela mãe de Aluísio Azevedo incomodava. Por ser recriminada pela própria população da época, pela sua situação social, o influenciou para escrever a obra”, disse o escritor
José Neres.

O pesquisador Flaviano Menezes lembrou a O Estado que incluir na obra um padre como vilão, algo impensável em uma sociedade tão tradicional, deu a noção do tom agressivo usado por Aluísio na obra. “Ele, literalmente, chutou o balde. Encantador saber que uma obra de suma importância nasceu naquele casarão”, disse.

Recuperação
Em 2014, por iniciativa do Instituto Histórico e Geográfico do Maranhão (IHGM), a situação de abandono do casarão foi denunciada. O Estado também registrou o fato à época e registrou fotos evidenciando que a parte interna do imóvel estava praticamente destruída, restando apenas a fachada e as laterais.

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O imóvel foi comprado e seria transformado em um estacionamento. Por causa disso, entidades como o IHGM e a Academia Maranhense de Letras (AML) ingressaram com medidas judicias para impedir a demolição do imóvel. O pedido foi acatado, e a reforma do sobrado está em andamento. Uma vistoria no local seria feita no início deste mês. No entanto, uma nova visita deverá ser realizada por representantes de instituições e do Judiciário em novembro.

O choro da escrava injustiçada: o Palácio das Lágrimas
Uma das construções mais emblemáticas da cidade e com história mais rica é o Palácio das Lágrimas, na Rua da Paz, esquina com Rua São João. O prédio foi ocupado, inicialmente, por um homem chamado Jerônimo de Pádua. Com vários escravos, ele era conhecido por ostentar riqueza para a sociedade da época. Era um comerciante português e, segundo Domingos Vieira Filho, residia em um imóvel de “três andares com umbrais de cantaria”.

A paz do imóvel, do século XVIII, foi quebrada pela morte de um dos filhos do sócio de Pádua. Uma de suas escravas foi acusada do crime. Mesmo alegando inocência, foi condenada à morte. Ao ser levada para o cumprimento da pena, segundo a lenda, a escrava teria chorado muito e suas lágrimas escorreram nos corredores do prédio, que, dali em diante, tornou-se trágico e amaldiçoado.

Contam os historiadores que, anos após a ocupação da família de Pádua, as pessoas que residiram no prédio se envolveram em eventos considerados trágicos e que seriam decorrentes da injustiça com a escrava. Segundo o historiador Deusdédit Leite Filho, o prédio possui duas portas laterais e várias aberturas especiais e típicas do estilo chamado rococó, com a fixação de pináculos florais.

A configuração antiga do Palácio das Lágrimas foi destruída, e o prédio reerguido na década de 1920. Inicialmente, o local recebeu a Escola Modelo Benedito Leite. Na década de 1950, passou a abrigar a Faculdade de Farmácia e Odontologia.
Atualmente, o prédio passa por reformas. De acordo com o Instituto de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), os serviços fazem parte do conjunto do Programa de Aceleração do Crescimento Cidades Históricas (PAC).

[e-s001]Decapitação e desova de Mariquinhas: sobrado de Pontes Visgueiro
Construído no século XIX, na Rua de São João, esquina com a Rua da Saavedra, o sobrado de Pontes Visgueiro ocupa um papel importante por ser sede de uma das histórias mais impressionantes da cidade. Nele, morou o desembargador José Cândido de Pontes Visgueiro, um alagoano que viria para São Luís constituir família.

Após certa idade, conforme relata o professor Antônio Guimarães, em “Becos & Telhados”, Pontes Visgueiro se apaixonou por uma mulata, chamada Maria da Conceição, popularmente chamada – conforme citado por Jomar Moraes – de Mariquinhas. Ela era filha de uma prostituta, e sua imagem era considerada negativa à sociedade da época.

Mesmo “mal falada”, Visgueiro começou a viver com ela. Apesar da ser cortejada por ele, Mariquinhas ainda o traía com outros homens. Cansado de falta de consideração, no dia 14 de agosto de 1873 Pontes Visgueiro, acompanhado por um capanga, atraiu Mariquinhas para o interior do imóvel.

No segundo andar, a moça foi imobilizada e espancada. Após matá-la, Visgueiro, com a ajuda do auxiliar, a esquartejou e a escondeu nos fundos do prédio. Chama a atenção um dos trechos do inquérito que detalha o caso. Segundo o documento, Visgueiro “viu Maria da Conceição estirada no meio do soalho, com os pés para a porta e a cabeça para a parede. O desembargador foi sobre ela, mordeu-a no peito e deu-lhe uma punhalada no lado oposto ao que ela já tinha outra, e ela ainda abriu a boca”.

Sem ter como escondê-la por muito tempo, o corpo da jovem foi encontrado dias após o crime. O julgamento aconteceu no dia 13 de maio de 1874 e, após ser provado que o autor supostamente apresentava transtornos mentais, o desembargador – em vez de pagar com a pena de morte – cumpriu prisão perpétua. Atualmente, o prédio está ligado ao patrimônio de uma empresa bancária. Até os dias de hoje, o imóvel reúne curiosos por causa de sua história.

[e-s001]Imóvel do Torreão e o prédio de porcelana: Palacete Gentil Braga
Localizado na Rua Grande – número 782 -, na esquina com a Rua do Passeio e com características peculiares do século XVIII, o Palacete Gentil Braga – conhecido por seus lindos azulejos que o revestem e sua configuração peculiar – é também chamado de Palacete de Porcelana ou Casarão da Viração – por ficar em uma esquina conhecida do Centro. É um imóvel de grande importância literária, pois nele Gentil Homem de Almeida Braga, um dos nomes importantes para a escrita maranhense, foi criado. Nascido em São Luís, foi para Recife, onde se formou em advocacia.

Ao voltar, Gentil Braga escreve no mirante do palacete (chamado também por alguns autores de “Torreão”, erguido ao sul da construção por influência de correntes medievais para controle visual) o livro intitulado “Entre o céu e a terra”, cujo título foi – de acordo com pesquisadores – uma referência clara ao local em que a obra foi escrita. Ele assinou o exemplar com o pseudônimo Flávio Reimar. Além deste capítulo da história, o prédio possui característica singular, como arco ogival, escadaria em mármore branco e um corredor com ladrilhos.

Além da obra mais emblemática de sua bibliografia, Gentil Braga também reuniu o chamado Grupo Maranhense no imóvel famoso. Foi no palacete que começou a surgir o termo “Athenas Brasileira” para a capital maranhense, em referência à robusta produção intelectual do período. O momento da “Athenas” precedeu ao Semanário Maranhense, movimento literário que durou aproximadamente um ano e que, apesar do pouco tempo, foi considerado um marco para a produção literária local. Após a mudança do intuito residencial, o palacete passa a ser incorporado à estrutura da Universidade Federal do Maranhão (UFMA).

[e-s001]Infância e adolescência sofridas: casarão de Humberto de Campos
Filho de uma mulata de Barreirinhas, Humberto de Campos – importante escritor maranhense – foi, no fim do século XIX, morar com a mãe no imóvel, onde passou boa parte da infância e adolescência (situado na Rua da Paz, esquina com a Rua Coronel Colares Moreira) após nascer no interior do estado. Após a mãe se “juntar” com um comerciante português, chamado José Dias Matos, Humberto de Campos passou a ajudar o agora padrasto nos negócios – que funcionavam no térreo do imóvel.

Uma das passagens mais marcantes e vividas por ele no casarão é relatada no documentário “Moradas e Memórias”, de Flaviano Menezes da Costa. Foi quando, na passagem entre os anos 1899 e 1900 ele, inconformado com o fato de passar a virada “limpando garrafas”, disse a si mesmo que nunca mais viveria aquilo. “Aquele sobrado tem uma simbologia com as angústias do escritor”, disse o escritor José Neres, que afirmou ainda que, apesar do sentimento negativo, o imóvel tem uma característica de esperança, já que ali nasce a vontade do escritor de mudar de vida.

Ciente de que deveria mudar de vida, Humberto de Campos decide viajar para graduar-se. Antes, relembrou os momentos em que, ainda morando no casarão, ia diariamente até a biblioteca pública (atual sede da Academia Maranhense de Letras) após o trabalho no comércio, do então português, para ler. “Era onde ele dizia aos familiares que ia ver Júlio Verne, viajar pelo mundo. Foi ali que ele começou a se letrar”, afirmou José Neres.

Crime da mulher doce: o sobrado da Baronesa de Grajaú
Erguido distante do Centro Histórico e com intuito de abrigar uma das famílias de maior posse da região no período, o sobrado da Baronesa de Grajaú – prédio anexo do Museu de Arte Sacra, é uma construção também datada do século XIX. Serviu como refúgio de Carlos Fernandes Ribeiro e sua digníssima esposa, Anna Rosa Vianna Ribeiro, conhecida como “a Baronesa de Grajaú”.

Antes de virar um museu – intitulado, anos mais tarde, após passagem da família tradicional de Pio XII –, o imóvel recebeu a baronesa, que, conforme relatos de historiadores, era considerada uma mulher de duas faces, ou seja, gentil para as visitas e pessoas próximas e uma pessoa de temperamento duro e difícil, especialmente para os súditos.

Foi assim que a baronesa viu seu nome ser envolvido em um dos casos que mais chamou a atenção da sociedade ludovicense. Ela chegou a ser processada pela morte de um escravo, um menino chamado Inocêncio – de apenas 8 anos. Ele, ao lado do irmão Jacinto, eram considerados servos da baronesa e se reputavam a ela no sobrado. Até que em 1876, conforme referendado por Jomar Moraes, Inocêncio deu entrada na então Santa Casa de Misericórdia, com ferimentos generalizados, entre eles alguns na região da cabeça, que caracterizavam agressão.

Conforme cita o documentário “Moradas e Memórias”, a baronesa chegou a ir a júri, por intermédio do promotor de Justiça na ocasião, Celso Tertuliano da Cunha Magalhães. Por pertencer a um nicho da sociedade considerado especial, a baronesa – apesar de provas contrárias a ela contundentes – foi absolvida, por unanimidade. O fato é relatado na obra “O crime da Baronesa”, de José Eulálio Figueiredo de Almeida. Para ele, o desfecho do caso demonstra que a questão escravocrata ainda era um tabu. “As pessoas diziam já nesse período que não havia nada, mas era um assunto ainda tratado com receio sim”, disse.

Parte dos muros que davam para o quintal foi derrubada e incorporada ao espaço do Museu Histórico e Artístico. O espaço foi adquirido pelo Governo do Maranhão em 1972.

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