Crônica

Até os ossos

Antonio Carlos Lima

Atualizada em 11/10/2022 às 12h34
(Patrimônio)

Dez anos depois do sucesso estrondoso do romance “Os sofrimentos do jovem Werther”, e sentindo-se sufocado pelo ambiente intelectual da Alemanha do final do século XVIII, Goethe decidiu fazer uma viagem à Itália. Escrevendo de Roma aos amigos, disse: “Sigo sendo o mesmo homem, mas creio ter mudado até os ossos”. Em outra carta, enviada de Nápoles, reafirmou: “Pareço a mim mesmo uma pessoa totalmente diferente”.

No livro que escreveu sobre a experiência, “Uma viagem à Itália” (Companhia das Letras), o endiabrado poeta do romantismo alemão revela todo o seu encantamento com o passado retido nas ruas e monumentos das velhas Roma, Milão, Nápoles e Pompeia, que lhe revelavam, viva e pulsante, a grandeza de outros tempos.

Vinte anos atrás, depois de visitar Nápoles, Pompeia e Roma, e de presenciar, no dia 4 dezembro de 1997, a sessão histórica de votação do processo de inclusão de São Luís na Lista do Patrimônio Mundial, a mesma lista que contempla as três cidades italianas, experimentei, sem me dar conta, a mesma sensação vivida dois séculos antes pelo autor do “Fausto”.

Sob encantamento, diante de tantos monumentos que testemunharam uma das fases mais luminosas da história da civilização ocidental, pude melhor compreender, sem o romantismo entranhado do poeta, a importância do título que o centro histórico de São Luís do Maranhão passava a ostentar, como importante exemplo de assentamento humano tradicional, representativo de uma cultura e de uma época.

No entanto, só fui conhecer o relato de Goethe sobre sua marcante viagem à Itália dois anos depois das cerimônias que presenciei na Itália. Ganhei o livro, como presente de aniversário, do arquiteto e urbanista Ronald Almeida e Silva, primeiro coordenador, ao lado de Phelipe Andrès, do projeto Praia Grande, de restauração do centro histórico de São Luís.

No livro, Ronald Almeida escreveu-me uma dedicatória muito generosa, que tomo a liberdade de reproduzir, em parte, porque revive os momentos únicos, e até aventurosos, que experimentamos naqueles dias na pátria de Dante Alighieri:

“Em cinco de dezembro de 1997, tive a gratíssima satisfação de presenteá-lo, na data do seu aniversário, com incursão na tarde italiana, levando-o a visitar Pompeia, o que conseguimos pulando a cerca e a proibição esdrúxula dos italianos de impedir a nossa entrada pelas vias normais, após o horário protocolar. Mas aquela escaramuça foi um momento mágico. Apenas 24 horas após a consagração de São Luís como Patrimônio da Humanidade, na mesma sessão da Unesco que igualmente consagrou a mitológica cidade do império romano, ali estávamos, dois brasileiros nascidos e criados meninos de origem humilde, haurindo os ares e a aura de Pompeia, um dos maiores ícones da história da humanidade.

“De certa forma – prossegue Ronald Almeida -, ali também estávamos, com a participação decisiva do trabalho de São Luís, contribuindo para perenizar e universalizar uma das mais belas cidades do gênero que ainda se preservam no mundo. Meu presente é este livro de Goethe, que narra sua viagem à Itália, ilustrado com magnifícos desenhos de sua própria lavra. Fiquei emocionado ao ler nele algumas passagens que me trouxeram à lembranca a cerimônia da Unesco e a consagração de nosso trabalho na Itália. Penso que o seu coração vai sentir o mesmo, ao relembrar a jornada em Nápoles, a visita a Pompeia e Roma, enfim, a sua própria viagem à Itália”.

Relendo hoje (ontem), 20 anos depois, também no meu aniversário, o livro do grande poeta alemão e a dedicatória carinhosa do amigo Ronald Almeida, vêm-me à memória, com nitidez e uma grande emoção, as imagens deslumbrantes da velha Itália e aqueles instantes mágicos que deram a São Luís o título de Patrimônio da Humanidade, uma distinção conferida a poucos lugares no mundo.

Assim como Roma, Nápoles e Pompeia, São Luís representa, no julgamento do organismo das Nações Unidas para a Ciência, Educação e Cultura, “um exemplo destacado de conjunto arquitetônico e paisagem urbana que ilustra um momento significativo da história da humanidade”.

Por isso, como Goethe, continuo hoje sendo o mesmo homem, mas creio ter mudado até os ossos depois daquela viagem à Itália.

Antonio Carlos Lima é jornalista. Foi Secretário de Comunicação Social do Maranhão e diretor de Redação de O Estado do Maranhão.

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