PESQUISA

Revisitando o PASSADO

Projeto “O Obscuro Fichário dos Artistas Mundanos”, que teve por base os fichamentos feitos pela DOPS/PE de vários artistas que atuavam no Brasil entre 1934 e 1958, abre inscrições para propostas artísticas inéditas inspiradas na documentação

Atualizada em 11/10/2022 às 12h51
Mulheres formavam a maior parte dos artistas fichados
Mulheres formavam a maior parte dos artistas fichados (Projeto O obscuro fichário dos artistas")

O interesse pelas histórias que não ficaram muito bem esclarecidas no passado sempre foram um atrativo especial para a jornalista e produtora carioca Clarice Hoffman. Radicada há mais de 35 em Pernambuco, a pesquisadora encabeça o projeto “O Obscuro Fichário dos Artistas Mundanos”, baseado em fichamentos e prontuários feitos pela DOPS/PE de vários artistas que atuavam no Brasil entre 1934 e 1958. A pesquisa lançou convocatória para que interessados em criar trabalhos inéditos, tendo em vista suas plataformas específicas de produção e publicação: o site do projeto, suas páginas nas redes sociais e/ou seu catálogo. As inscrições são gratuitas, estarão abertas até o dia 24 deste mês e podem ser realizadas via internet. O projeto é fruto do “Rumos 2013-2014”, do Itaú Cultural.

Hoffmann conta que ao coletar informações sobre a trajetória das mulheres negras no Brasil há 10 anos, teve o primeiro contato com Departamento de Ordem e Política Social (DOPS/PE), órgão que durante muito tempo fichou vários artistas que atuavam no país por motivos, até então desconhecidos. Motivada pela busca de informações de sua avó, que era atriz e também foi fichada pelo DOPS, Hoffman iniciou uma busca detalhada no Arquivo Público Estadual Jordão Emerenciano (Apeje) que culminou na elaboração do projeto “O Obscuro Fichário dos Artistas Mundanos”.

A pesquisa só foi iniciada graças a promulgação da Lei de Acesso à Informação (Lei nº 12.527, de 18/11/2011), em seu art. 21, assim como no art. 58, II, do Decreto nº 7.724/2012, quando arquivos antes salvaguardados por órgãos públicos tinham acesso restrito do grande público. A pesquisadora conta que decidiu retornar ao DOPS para saber se alguma pesquisa relacionada aos artistas fichados havia sido realizada e, para a surpresa dela, nenhum trabalho havia sido desenvolvido ainda. “Percebi que era hora de fazer algo. Durante três meses desenvolvi a pesquisa e sistematizei os dados das fichas e descobri que tinha nas mãos uma cena ‘underground’ de Recife entre 1934 e 1954”, relatou.

Com isso, o projeto descobriu uma documentação composta por aproximadamente 1.100 verbetes, contudo, somente 403 arquivos de pessoas fichadas pela DOPS/PE foram encontrados. “Em algum momento difícil de precisar, todas as fichas do conjunto relacionadas aos nomes iniciados entre as letras A e L foram perdidas. Apenas as letras de M a Z foram catalogadas. Acreditamos que houve algum acidente envolvendo água que danificou parte do acervo, pois muitas fichas estavam manchadas”, hipotetizou Hoffmann.

Além das fichas, foram encontrados 1.200 prontuários. “Uma das conclusões que tivemos sustenta que alguns desses artistas exigiam uma investigação mais apurada, eram suspeitas e por isso foram criados prontuários para elas”, mencionou a pesquisadora. Segundo ela, uma das sugestões para o fichamento destes artistas (60% eram mulheres e 40% estrangeiros), apoia-se no forte apelo da moral e dos bons costumes do país naquela época.

“Chegamos a conclusão que essas pessoas foram fichadas por conta dos corpos delas e não por suas ideologias. A DOPS (hoje um departamento, mas naquela época uma delegacia) era de ordem política e social. Na época do presidente Getúlio Vargas, a moral era bem forte. Essas pessoas foram fichadas por conta do corpo, por serem nômades, não terem raízes em um lugar fixo e isso apavorava as pessoas. As mulheres eram tidas como sedutoras, trabalhavam à noite e tudo isso não era visto com bons olhos pelo regime que era rígido e masculino”, descreveu Clarice Hoffmann.

Mundanos

Ao todo, 430 personagens perfazem o enredo do projeto “O Obscuro Fichário dos Artistas Mundanos”. E sua maioria, eram bailarinas, fantasistas, sapateadores, excêntricos, transformistas, acrobatas, ilusionistas e artistas enciclopédicos. Nomes conhecidos a nível nacional, como Dalva de Oliveira, Grande Otelo e Walter D’Ávila também foram fichados.

Um dos casos curiosos é o de Krikor Tahra Kalafayan, conhecido pelo grande público como Tahra Bey. Ele era famoso por suas habilidades psíquicas de telepatia, ilusionismo e outros feitos mágicos, além de afirmar à polícia local que tinha a profissão de doutor. No Recife, suas atuações eram divulgadas com freqüência nos jornais entre 1933 e 1934, sendo chamado de médico egípcio. Sua fama fez com que um jornal local noticiasse que Tahra era capaz de ler os pensamentos dos de seus leitores a partir da análise da letra dos correspondentes. Outro periódico acusou Bey de lucrar com a fé das plateias pernambucanas, visto que ao contrário de outros, não se propagandeava ilusionista, porém médico, e cobrava por consultas particulares. Segundo a pesquisa, nas notícias apensadas ao prontuário, as fotografias veiculadas pelos periódicos com imagem de Tahra Bey, nem sempre correspondem à mesma pessoa.

Para Hoffmann, todo o projeto é fruto da era virtual. “Conseguimos fazer esse levantamento por meio da hemeroteca brasileira, pois muitos jornais antigos estão digitalizados e disponibilizados na internet. Cobrir 20 anos de um jornal em um ano com uma equipe mínima seria impossível. Muitas informações que carecíamos estavam disponibilizadas na rede, mas não com o fim devido. Agora, tudo está acessível em um site específico”, disse.

O nome da pesquisa, segundo a criadora, tem por finalidade homenagear os artistas que eram conhecidos naquela época como “mundanos”. “Nos anos 1930, lendo Gilberto Freire e outros escritores, se falava muito em ‘mundanidade’, e mundano, segundo o dicionário, é aquela pessoa que se relaciona com os prazeres do mundo. Eu acho isso uma qualidade, não vejo com preconceito. É uma palavra que ficou muito carregada, marginalizada, mas eu gosto de pessoas mundanas. Os artistas fichados ficaram conhecidos como mundanos e eu quis deixar como uma homenagem a eles também como intuito de recuperar o sentido da palavra”.

Inscrições

Buscando dar visibilidade ao projeto, foi lançada uma convocatória para interessados em criar trabalhos inéditos a partir do fichário da DOPS/PE e do pesquisa “O Obscuro Fichário dos Artistas Mundanos”, tendo em vista suas plataformas específicas de produção e publicação: o site do projeto, suas páginas nas redes sociais e/ou seu catálogo.

As inscrições, que são gratuitas, podem ser feitas através do email obscuroficharioconvocatoria@gmail.com até o dia 24 de janeiro. Maiores informações no site http://obscurofichario.com.br. A convocatória está aberta a quaisquer criações que, pensando o fichário ou questões a ele correlatas, possam se dar nesses espaços. É de interesse do projeto a participação de artistas, escritores, designers, cineastas, programadores, pesquisadores ou quaisquer outros interessados em pensar crítica e sensivelmente dimensões históricas, culturais, políticas e sociais que atravessam ou tangenciem a história desse fichário da DOPS/PE e dos sujeitos, práticas e espaços por ele mapeados.

Serão selecionados de três a cinco projetos inéditos, que disporão de verba entre R$ 5.000,00 a R$ 10.000,00 (brutos) para viabilizar sua produção. À comissão de seleção está reservada a decisão acerca da quantidade de projetos a serem premiados, bem como dos orçamentos disponíveis à sua realização. O desenvolvimento dos projetos será acompanhado pela equipe curatorial de “O Obscuro Fichário dos Artistas Mundanos”, visando a potencialização dos projetos em todos os seus aspectos e a elaboração de ensaio sobre os trabalhos realizados.

Clarisse Hoffmann é carioca e radicada em Pernambuco há 35 anos. É jornalista formada pela Universidade Católica de Pernambuco (Unicap), mas atua como produtora cultural e pesquisadora. Ao longo dos anos trabalhou com organizações não-governamentais com ênfase na luta de direitos de artes visuais. O atual trabalho é fruto dessas duas trajetórias.

Equipe do projeto “O Obscuro Fichário dos Artistas Mundanos”

Idealização e Coordenação do projeto - Clarice Hoffmann

Assessoria Histórica - Durval Muniz de Albuquerque Júnior

Pesquisadores Convidados - Alexandre Figueira e Marcília Gama

Pesquisa - Alberto de Oliveira, Bruna Dourado, Clarice Hoffmann, Mariana Lacerda (DEOPS/SP) e Mateus Simon

Estágio - Thulio Aragão (pesquisa)

Textos das Resenhas - Alberto de Oliveira (artistas fichados), Bruna Dourado (artistas fichados e locais prontuariados) e Mateus Simon (artistas e locais prontuariados)

Revisão - Alberto de Oliveira (padronização)

Edição de textos - Fabiana Moraes (cartografia) e Marcia Larangeira (fichário)

Edição Cartografia (mapas e ilustrações) - Mateus Simon

Edição Final (conteúdo) - Clarice Hoffmann

Desenvolvimento do site - Coffeecup

Design Gráfico (web) - Lin Diniz

Reprodução fotográfica - Josivan Rodrigues

Digitalização e Tratamento de Imagens - Chia Beloto (imagens pins cartografia) e Michelly Pessôa

Design Gráfico (catálogo) - Daniela Brilhante

Equipe Curatorial - Clarissa Diniz e Gleyce Heitor

Assessoria Jurídica - Diego Medeiros

Assessoria Produção Executiva - João Vieira Jr. + Rec Produtores

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