Crônica

Tempos idos e vividos

Jomar Moraes

Atualizada em 11/10/2022 às 12h57

A recentemente passada temporada junina, que em dias pretéritos já representou uma quadra de tão intensa folgança que correspondia, para mim, a verdadeiro carnaval, este ano vivi-a completamente “in albis”. E tudo, exclusivamente, por culpa de um tal de herpes zoster. Por ditames da dita cuja, terminei dando com os costados numa cama de hospital, onde a dor intensa proveniente do mal era periodicamente alternada com a cega procura de minhas delgadas veias, fato que, combinando pouquidão venosa com excesso de imperícia, resultou em dores que ainda hoje me lancinam somente pelo fato de lembrá-las.

Para fugir das lembranças traumáticas, trouxe do fundo do poço da memória as boas lembranças de tempos idos e vividos. E regressei alegremente aos dias de minha infância em Carutapera, na época a última cidade maranhense no sentido de quem demandava o Pará, pois logo adiante, do lado oposto à região do Gurupi, estava (e ainda está, logicamente) a cidade paraense de Viseu.

Sou, desde a mais tenra idade, fascinado pelos encantos do boi, num período em que a memória, em plena zona de lusco-fusco, não permite separar seletivamente recordação de invenção. Mas para mim, os bois de que primeiramente me lembro eram desataviados dos brilhos que hoje enchem de especial rutilância os novilhos que dão graça e colorido aos terreiros da Ilha.

Se por acaso não sou traído pela memória de remotos tempos que longe se vão, os bois que fascinaram os dias de minha infância eram, comparativamente com os atuais, pobres, bem simples e até simplórios. Reuniam poucos brincantes, os rajados, de chapéus modestos, dos quais pendiam fitas parcas, que suponho fossem de papel de seda ou material equivalente. Tais chapéus, segundo estou convencido pela memória, não teriam acabamento esmerado e, segundo dita minha imprecisa recordação, traziam por ornamento flores naturais, as que exageravam na improvisação, ao passo que outras, um pouco mais sofisticadas, pareciam feitas de papel crepom.

Para fugir das lembranças traumáticas, trouxe do fundo do poço da memória as boas lembranças de tempos idos e vividos. E regressei alegremente aos dias de minha infância em Carutapera, na época a última cidade maranhense no sentido de quem demandava o Pará, pois logo adiante, do lado oposto à região do Gurupi, estava (e ainda está, logicamente) a cidade paraense de Viseu.Jomar Moraes

Um dos mais famosos botadores de bois dos tempos que aqui evoco era o mestre Eulálio, mulato arroxeado ou negro de compleição possante. Carpinteiro naval de profissão, era admirado por sua força física e apetite pantagruélico. Ficaram célebres na cidadezinha em que praticamente todos se conheciam, as apostas e porfias para as quais, passado algum tempo, mestre Eulálio, não mais encontrando quem com ele apostasse ou desafiasse, limitava-se simplesmente a, nos leilões de festas religiosas, servir de centro das admirações dos que lhe compravam um gordo e bem-criado capão para que ele o destroçasse ali mesmo, para em seguida tomar por sobremesa uma garrafa de mel de cana com farinha. Um litro, não, por ser exagero, pois acabara de traçar um capão inteiro com seus correspondentes acessórios culinários. Um litro de mel com farinha d’água ou seca, devorava-o, se estivesse com fome, já que não era bicho para comer em demasia, explicava.

Generoso e ao mesmo tempo excessivo, mestre Eulálio exagerava também na escala zoológica de sua produção lúdica. Em vez de fazer tão somente o boi e a burrinha, como é mais comum, “fabricava”, além dos dois citados animais, outros, e quase sempre pertencentes à fauna africana, a exemplo de leão, girafa, zebra e até hipopótamo. Não posso assegurar com absoluta segurança que a lista esteja completa ou, quem sabe, inflada com algum item “criado” pela minha imaginação. Seja como for, havia mais que somente boi no boi de mestre Eulálio. E passado o período da brincadeira, todo esse despotismo de animais desaparecia como por encanto, sem que eu me lembre das clássicas cerimônias dedicadas às suas mortes.

Por muito tempo acreditei que, às escondidas, mestre Eulálio as ia devorando uma após outra. E, de sobremesa, refestelava-se com mel de cana e farinha ... d’água ou seca.

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