Lembrança de Eduardo Galeano & outras lembranças
Garanto, com absoluta certeza, que se uma das fotografias que guardo como recordação de minhas andanças pelos bairros, livrarias, teatros, museus e outras entidades culturais de Lima, não falaria do assunto de que hoje me ocupo.
Garanto, com absoluta certeza, que se uma das fotografias que guardo como recordação de minhas andanças pelos bairros, livrarias, teatros, museus e outras entidades culturais de Lima, não falaria do assunto de que hoje me ocupo. Além de estender minha permanência no país-irmão a uma boa dúzia de outras cidades, vilarejos, “pueblitos” e ricos monumentos arqueológicos do chamado Peru profundo, continuo, publiquei uma dessas fotografias à página 118 (não numerada) de meu livro acerca de uma viagem ao Peru, onde, em torno de uma mesinha de café, estou entre o romancista peruano Jorge Díaz Herrera, a graciosa poeta nicaraguense Gioconda Belli e Eduardo Galeano, jornalista e escritor uruguaio. Deu-se essa agradável “charla” num intervalo do Encontro Latino-Americano de Escritores, realizado em Lima, de 20 a 27 de setembro de 1987. Portanto, há uns bons 28 anos, se é que não errei na contagem do tempo decorrido.
Nessa e em diversas outras oportunidades do aludido evento estive com Eduardo Galeano e com ele mantive memoráveis diálogos. Certa vez fomos a uma livraria, onde nos detivemos examinando lançamentos, apreciando, inclusive, a numerosa coleção denominada Munilibros, integrada por títulos predominantemente peruanos, de volumes de formato “pocket”, em papel de jornal e com acabamento simples, porém condigno. Tal coleção bibliográfica, iniciada e mantida pela Municipalidade limenha, teve por objetivo subsidiar um amplo programa popular de leitura que nos pareceu (a Galeano e a mim) muitíssimo interessante e eficaz, pelos resultados que nos foram informados.
Sabendo-me do Maranhão, e tendo clara noção da vasta geografia brasileira, quis ouvir minha opinião acerca da nossa conjuntura político-econômica, que ele acompanhava com interesse e conhecia razoavelmente.
Galeano me falou especificamente acerca do governo do então presidente Sarney e referiu-se com muita simpatia a Ferreira Gullar, com quem conviveu no exílio argentino.
Ao autografar-me um exemplar de “La venas abiertas de América Latina”, livro-denúncia contra a febre áureo-argêntea que dessangrou impiedosamente as entranhas mais profundas de nosso continente, ao mesmo tempo em que subjugava até a morte, os donos da terra condenados à escravidão mais inclemente e desumana, Galeano fez-me alguns reparos acerca dessa obra gestada e concluída quando ainda ostentava uns vigorosos saldos de juventude. Obra que foi, por sinal, o carro-chefe de sua bibliografia, em razão do sucesso de vendas e do prestígio transnacional que rendeu a seu autor. Os reparos e leves restrições que fez, tiveram a ver com a procedência de alguns dados que o teriam levado a interpretações passíveis de ajustamentos.
Mas a grande voz da consciência latino-americana continuava flamejante e vigorosa. E disso me certifiquei na volta ao Brasil, quando adquiri o esbelto, porém tonitroante volume intitulado “Nós dizemos não” (Rio de Janeiro: Revan, 1990. 88p), cujo primeiro texto, com o mesmo título do livrinho, é a íntegra do discurso pronunciado em julho de 1988, na abertura do “Chile Cria”, encontro de arte, ciência e cultura pela democracia no Chile, que reuniu 300 partícipes em plena ditadura do general Pinochet.
Desse desassombrado pronunciamento de Eduardo Galeano, uruguaio de nascimento e latino-americano por seu corajoso ativismo, destaco apenas os seguintes breves excertos:
“Dizendo não só ditaduras, e não às ditaduras disfarçadas de democracias, nós estamos dizendo sim à luta pela democracia verdadeira, que a ninguém negará o pão e a palavra, e que será bela e perigosa como um poema e Neruda ou uma canção de Violeta Parra”.
“E dizendo não ao triste encanto do desencanto, nós estamos dizendo sim à esperança faminta e louca e amante e amada, como o Chile: a esperança obstinada como os filhos do Chile rompendo a noite”.
O capítulo seguinte desse livrinho onírico denomina-se Julgamento e Condenação do Poderoso Cavalheiro Doutor Dinheiro.
Em face de tal título autoexplicativo, suponho dispensável acrescentar qualquer comentário relacionado com as iradas condenações ao diabólico Doutor Dinheiro, com seu infrene cortejo de artimanhas e malefícios denominados juros abusivos, dívidas impagáveis, FMI, banqueiros insaciáveis e o escambau.
O terceiro capítulo desse pequeno-grande livro é composto de umas como 20 vinhetas de títulos diversos. Todos, porém, subordinados ao título Anotações sobre Memória e sobre o Fogo, espécies de sementes no terreno exuberante da consciência crítica latino-americana que já estava produzindo, em vigorosa ebulição, a trilogia épica denominada “Memória do fogo”, e da qual fazem parte os livros “Os nascimentos”, “As caras e as máscaras” e “O século do vento”. Essa importantíssima trilogia divulgada pioneiramente volume a volume no Brasil pela Nova Fronteira, saiu em 2013, num único e robusto volume sob o selo da prestigiosa editora gaúcha L&PM.
Trata-se, não haja dúvida, de obra fundamental para a cultura da humanidade e, especialmente, para a cultura latino-americana, da qual é, ao mesmo tempo, espelho e reflexo. Obra que se inscreve numa longa e luminosa tradição literária de épicos latino-americanos que têm seu início no poema quinhentista do espanhol Alonso de Escrilla, “La araucana”, e prossegue com títulos a bem dizer, inumeráveis. Dentre eles, sem nenhuma pretensão de minimamente citá-los todos, lembro, aleatoriamente, “El gaucho Martín Fierro” (1872), do argentino José Hernández, o inconcluso “O Timbiras” (1857), do nosso Gonçalves Dias, o também inconcluso “O Guesa” (1888), de Sousândrade, “Raza de bronce”, romance de boliviano Alcides Argüeras; romances do colombiano Gabriel García Márquez, dos peruanos José María Arguedas, Mario Vargas Llosa e Manuel Scorza (especialmente “A dança imóvel”, “História de Garabombo, o invisível”, “O cavaleiro insone”, “A tumba do relâmpago”) romances do guatelmateco Miguel Ángel Astúrias, dos cubanos Alejo Carpentier e Guilhermo Cabrera Infante, do paraguaio Augusto Roa Bastos e do brasileiro Erico Verisssímo. Falha imperdoável seria encerrar esta nominata incompletíssima sem citar o poema épico do chileno Pablo Neruda, “Canto general”.
E também sem repetir a afirmação feita no início: jamais evocaria aqui o recém-falecido cidadão do mundo Eduardo Galeano, se não houvesse publicado uma foto em sua companhia em meu livro “No império dos incas; notas e impressões de uma viagem ao Peru, levando, a tiracolo, O Guesa, de Sousândrade”.
Jamais falaria, por pudor ou pudonor. Para não dar a ideia de bazófia, que não cultivo. Nem de “cavulice”, como dizem os de poucas ou nenhuma letras.
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