São Paulo - A comediante Dercy Gonçalves subverte qualquer normalidade do curso natural da vida. Dercy não tem colesterol alto, diabete ou problemas no coração. Sua pressão arterial é 12 por 8 e ela anda sozinha, deixando de lado, por vezes, até a ajuda da bengala. Ágil, senta-se no sofá com os joelhos dobrados encostados ao peito e os pés na almofada.
Cozinha diariamente - aprecia mocotó e rabada - e usa muita, muita pimenta. Todas as tardes, religiosamente, arruma-se e vai aos bingos. E também todas as noites, antes de dormir, Dercy diz se perguntar: "Será que vou acordar amanhã?" Então, apela para as forças divinas: "Com Deus eu me deito, com Deus eu me levanto, com a graça de Deus e o divino Espírito Santo." Por via das dúvidas, aciona também alguns deuses tailandeses, dos quais ouviu falar quando esteve em Bangcoc: "Deuses, me ensinem a viver, me ensinem."
Foi em homenagem a um deles que construiu, há 15 anos, seu mausoléu na cidade fluminense de Santa Maria Madalena, a 223 quilômetros do Rio de Janeiro. Dercy desdenha: "Eu não tenho interesse algum em viver, mas não quero morrer. Mesmo a vida sendo ruim, a gente tem alegrias, felicidades". Em outro momento da conversa diz que, sim, quer morrer, mas sem sofrer. Só não admite que isso aconteça no Retiro dos Artistas ou num hospital. "Eu já fiz tudo o que tinha que fazer." Sua única filha, Maria Dercimar, 71 anos, desmente: "Ela se péla de medo de morrer."
Pelo sim, pelo não, Dercy se garante. Vive um dia de cada vez. "Uma pessoa centenária não pode combinar nada para amanhã, só para hoje. Venha hoje", resolveu, quando consultada para esta entrevista. Centenária aos 99 anos? Ao se completar 99, inaugura-se o começo dos 100 anos. De fato, o tempo de Dercy Gonçalves é outro. Trata-se de um tempo, digamos, elástico: "Vivi um vidão. Peguei todas as fases e fiz muita coisa em primeiro lugar. O Brasil não tinha nem televisão, nem rádio, nem automóvel. Era carro de boi, bonde".
Ruim de datas e de nomes, mantém a lógica e a rapidez no raciocínio. Diz que ouvia falar do kaiser no rádio, e tinha muito medo dele, porque ele afundou dois navios brasileiros na "2ª Guerra Mundial" - embora estivesse se referindo à 1ª Guerra Mundial. Dona de um apartamento na rua Tonelero, onde Carlos Lacerda sofreu o atentado, ela comenta: "Para mim isso foi ontem!" E ainda se espanta com o telefone celular, "uma grande invenção da humanidade" e com a internet, embora não seja "de botão", como as atuais gerações. Diz que o tempo não a ajuda. "Sou eu quem ajudo o tempo. Eu não abuso das minhas vantagens, porque quem tem o comando da vida é você e não o tempo. Você tem que se comandar", filosofa.
PERUCA E MAQUIAGEM
A velhice incomoda? Por que fala nisso sempre? "Eu sou velha há muito tempo, minha filha. E antigamente a gente começava a ficar velha aos 40 anos, era 'a quarentona'. Ai meus 40 anos, eu era uma menina, brincava com a vida!", recorda. Certo, ela foi setentona em 1977, há quase 30 anos. Dercy errou feio em seus próprios prognósticos. Em agosto de 1991, disse numa entrevista que, nas suas condições, viveria até o ano 2001, 2002. "Eu tenho muito cuidado com a minha santidade. Não tomo nada de tóxico, nunca bebi álcool", explica. Seu elixir da juventude inclui ainda quatro copos de soro caseiro, um "ajudante de sono natural" e, ah, ela também cheira rapé.
Vaidosíssima, faz uma automontagem para sair à rua todos os dias. Coloca cílios postiços, peruca, muita maquiagem e bijuteria. Em seu quarto de cortinas douradas e uma parede de espelhos, há uma penteadeira que expõe o brilho de suas centenas de bijoux e a coleção de perucas loiras e gastas. Espalhadas pelos quatro dormitórios do apartamento, araras com roupas de paetês, brocados e bordados. Sempre agiu assim, a diferença é que agora não faz mais cirurgia plástica. A última foi aos 90 anos. Sim, 90 anos, ela jura. "Dei uma geral, fiz um peeling que era um lixamento da pele, tirei o culote, fiz a bunda", conta. Hoje, toma banho com água muito quente em sua banheira de mármore e faz alongamento com a ajuda de uma de suas três funcionárias. "Seria jogar dinheiro fora, um desperdício fazer plástica agora."
"Dercy sempre foi uma pessoa à frente do seu tempo, sem nenhuma preocupação com o julgamento alheio", diz José Bonifácio de Oliveira Sobrinho, o Boni, da TV Vanguarda, amigo de Dercy há 43 anos, com quem brigou e se reconciliou algumas vezes. Filha de um alfaiate e de uma lavadeira, com oito irmãos, Dercy fugiu de casa e do pai aos 17 anos para seguir a Companhia Dramática Maria Castro. Um escândalo na pequena Santa Maria Madalena.
Trabalhou na Casa do Caboclo, um espaço teatral dedicado ao folclore que também lançou o compositor Herivelto Martins e a cantora Dalva de Oliveira, além de Jararaca e Ratinho - Jararaca foi o autor do sucesso Mamãe Eu Quero -, no começo dos anos 30. Conta que viveu com três homens na vida, embora só tenha se casado com o jornalista Danilo Bastos, com quem ficou por quase 20 anos. Tuberculosa, foi ajudada pelo pai de sua filha, Ademar Martins, homem casado, com quem "não quis viver porque queria ser Dercy Gonçalves, queria a Praça Tiradentes".
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