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COLUNA
Kécio Rabelo
Kécio Rabelo é advogado e presidente da Fundação da Memória Republicana Brasileira.
Kécio Rabelo

Conversa de Natal

Talvez o Natal não tenha sido perdido — só ficou escondido debaixo dos embrulhos.

Kécio Rabelo

Naquela noite, o presépio parecia pequeno demais para o barulho do mundo. As luzes piscavam em excesso, como se tentassem esconder alguma coisa. José e Maria descansavam no canto esquerdo da manjedoura, aquecidos por uma lamparina de chama branda.

Um senhor chegou calado. Idade avançada, barba por fazer, roupa surrada. As botas, gastas pelo tempo, pareciam pedir socorro. Sentou-se na palha, cansado — não do peso dos presentes, mas do papel que lhe haviam imposto.

— Mudaram até a cor da minha roupa — disse, sem disfarçar o incômodo. — Nunca fui vermelho berrante. Nunca tive carro. Nunca tive carroça. Muito menos um trenó puxado por renas que jamais vi na vida. Caminhava. Andava. Parava onde havia fome.

O burrinho, inquieto, balançou a cabeça.

— Mas agora é assim que funciona. As pessoas precisam disso tudo. Das luzes, das compras, dos pacotes… sem isso, sentem um vazio enorme. E outra coisa: as crianças adoram!

O Menino abriu os olhos, atento.

— Talvez o problema seja exatamente esse — disse. — Um vazio tão grande que precisa ser preenchido com excesso. As crianças gostam porque confiam nos pais, e os pais as fizeram acreditar que, no saco vazio do coração, são necessários presentes para preenchê-lo.

O Velhinho suspirou.

— Fui bispo, burrinho. Nicolau, meu nome. Aprendi cedo que a caridade não fazia barulho. Hoje, se não piscar, não vende. Se não embrulhar, não emociona. Se não custar caro, não parece amor.

O burrinho insistiu:

— Mas as pessoas ficam felizes…

— Ficam ocupadas — corrigiu o Menino. — O consumo não cura o vazio; apenas o distrai. Quanto maior o vazio, maior a alegoria. Quanto maior a ausência de sentido, mais enfeite. E seguem assim.

Houve um silêncio pesado.

— Quando nasci — continuou Ele — os primeiros a chegar foram pastores. Não trouxeram ouro, nem mirra, nem incenso. Trouxeram presença. Trouxeram espanto. Trouxeram o coração aberto para uma novidade que não sabiam explicar.

O burrinho baixou as orelhas.

— E os Reis?

— Vieram depois — respondeu o Menino, com doçura firme. — E os presentes que trouxeram diziam mais sobre eles do que sobre mim. Ouro para quem achavam que eu seria. Incenso para a ideia que construíram. Mirra para o medo da perda. Eu não pedi nada daquilo.

O Velhinho assentiu.

— Hoje fazem o mesmo comigo. Transformaram-me em gerente do desejo, em garoto-propaganda do excesso. Esqueceram que aprendi contigo que dividir era mais importante do que ter. Até meu nome mudaram.

O burrinho olhou ao redor. Viu vitrines e calçadas cheias de gente vazia. Viu sacolas cheias e mãos vazias de afeto.

— Então… erramos o Natal?

O Menino levantou-se devagar.

— Erramos quando confundimos celebração com anestesia. Quando compramos para não sentir. Quando iluminamos tudo para não enxergar quem ficou à margem. Quando ofuscamos pessoas com embalagens padronizadas.

O Velhinho ajeitou o gorro — agora menos vermelho, mais gasto.

— O Natal não precisa de tanto — disse. — Precisa de atenção. Precisa de tempo. Precisa de coragem para olhar o outro sem embrulho. Veja teus pais: cansados de tanto procurar um lugar para você nascer e, ainda assim, acolheram bem quem chegou. O tempo dedicado é experiência de encontro e de acolhida. É aí que se compreende o Natal.
 

O burrinho respirou fundo.

— Talvez o mundo esteja cansado… mas com medo de parar.

O Menino sorriu.

— O essencial nunca fez barulho. Por isso, poucos escutam. Estar junto nem sempre é estar próximo. Proximidade é experiência.

E, naquela noite, o presépio permaneceu simples. Nenhuma luz piscou mais forte. Mas, pela primeira vez em muito tempo, parecia haver ali algo raro: sentido.


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