A Ilha de Caras
O tempo desorganiza percepções — e esse é um valor.
Na infância, na casa da minha mãe havia as revistas Caras. As páginas coloridas mostravam celebridades sorridentes em um paraíso chamado “Ilha de Caras”. Eram festas impecáveis, corpos perfeitos, dentes brancos e felicidades sem rachaduras. Eu acreditava que aquilo era apenas cenário de revista. Anos depois, descobri que a ilha existe mesmo, em Angra dos Reis. Mas a constatação não retirou o artifício: era real, mas o espetáculo sempre foi montado.
O tempo desorganiza percepções — e esse é um valor. A Ilha de Caras não ficou restrita às celebridades. Ela se multiplicou e se instalou no bolso de cada um de nós. Está no feed do Instagram, no status do WhatsApp, nas dancinhas do TikTok. Cada um monta o seu cenário perfeito; o “instagramável” tornou-se sinônimo de existir. A velocidade e fluidez da comunicação são avanços que precisamos reconhecer. Mas, em meio a essa maré, navegamos num mar revolto, sem sinalizações, sem freios. É sempre sobre liberdade — mas, paradoxalmente, é uma liberdade que convive, e até sobrevive, de imposições.
Quantas vezes você já sentiu que precisava sorrir para uma foto, mesmo sem vontade? Quantas vezes pensou: “se não postar, ninguém vai saber”?
Vivemos a sociedade líquida de Bauman: nada é estável, tudo escorre. Relacionamentos, identidades, amizades — tudo parece depender de curtidas e reações. A pergunta que inquieta é inevitável: será que estamos vivendo ou apenas posando?
Buscamos o corpo perfeito, a viagem perfeita, a vida perfeita — e, em troca, acumulamos mentes cansadas, ansiosas e cheias de comparações. Quantos de nós medimos nosso valor pelo número de likes? Quantos se sentem invisíveis quando o celular não vibra? Quantas vezes já olhamos para a própria vida e pensamos que não é tão bonita quanto a do vizinho, do colega, do influencer? Quantos de nós perseguimos a própria infelicidade, acreditando que corremos atrás da alegria?
Mas caberia aqui explorar as dimensões filosóficas e humanas desse fenômeno comportamental. Não é o caso.
Ainda assim, é preciso lembrar: a identidade pessoal, as marcas singulares de cada um, são um valor a ser preservado. Não fomos feitos em série, nem chamados a exibir os mesmos rostos e sorrisos. A diversidade é riqueza, mas a padronização — quando erguida como regra — esconde uma alienação profunda, que às vezes pode ser mortal. A busca interminável pela perfeição idealizada se transforma em um escombro de frustrações, que, a longo prazo, enterra qualquer força de existir. Não tenho que fazer tudo. Não tenho que ser tudo. Não tenho que sorrir sempre. Não tenho que ter. Tenho apenas que ser — e descobrir, todos os dias, o valor de existir. Redescobrir o calor de um abraço como antídoto para a frieza das telas.
O paradoxo nos corrói: sorrimos para fora e sangramos por dentro. Exibimos músculos definidos, mas escondemos corações desorganizados. Temos feeds lotados de amigos e timelines vazias de afeto real. O que estamos construindo, afinal, quando a existência se mede por reações digitais?
A Ilha de Caras continua de pé, mas agora está dentro de cada rede social, habitada por nós. O desafio? Não naufragar nesse mar de aparências.
E talvez a pergunta mais importante seja: vale a pena viver para os aplausos ou é hora de reaprender a viver para nós mesmos?
Saudade daquela revista e do tempo em que ela circulava. Nunca a levei no bolso — e, talvez por isso, eu tinha tempo de ter mais tempo.
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