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COLUNA
Diogo Gualhardo
Diogo Gualhardo Neves advogado e historiador.
Diogo Gualhardo

Espanha e EUA: qual o ponto de acordo entre países tão diferentes?

Ambos entendem que o Supremo Tribunal Federal tem errado. Talvez o estimado leitor ainda não tenha percebido, mas os Estados Unidos e a Espanha são quase a antítese um do outro.

Diogo Gualhardo

Ambos entendem que o Supremo Tribunal Federal tem errado. Talvez o estimado leitor ainda não tenha percebido, mas os Estados Unidos e a Espanha são quase a antítese um do outro. Diferem profundamente em formação histórica, cultural e organização política. Contudo, concordam que procedimentos legais relativos às relações internacionais com o Brasil estão sendo ignorados por nossa Corte quando ela trata do direito fundamental individual da liberdade de expressão.

A Espanha é uma monarquia constitucional parlamentarista. Os Estados Unidos, uma república democrática presidencialista. A cultura do país ibérico foi influenciada por povos desde a Antiguidade, como os fenícios, celtas, romanos, muçulmanos e cristãos medievais. A nação americana por sua vez, com ingleses, alemães, africanos, latino-americanos, dentre muitos outros imigrantes que ali chegaram a partir do século XIX. Depois de 1492, a Espanha criou um império ultramarino. Já os Estados Unidos tiveram sua independência frente a coroa britânica somente em 1776, quando o próprio poderio espanhol já não tinha o peso de antes.

Foi numa guerra entre os Estados Unidos e a Espanha, travada em 1898, que os primeiros tomaram da segunda Cuba, Filipinas, Porto Rico e Guam, simbolizando o sepultamento de um domínio mundial e a consolidação de outro. Ao fim da Segunda Guerra, nenhuma potência igualava-se aos yankees. Nos dias atuais, os idiomas espanhol e inglês são dos mais falados e influentes, e por causa desses dois países.
A propósito, Estados Unidos e Espanha têm também suas esquisitices, quase impensáveis fora de suas fronteiras: uma aprecia a violenta tourada, o outro, o bizarro futebol que não usa os pés... Ah, sendo do universo das leis, não poderia deixar de citar que os americanos são regidos pela Common Law, o direito costumeiro baseado em precedentes judiciais, enquanto a Espanha, assim como nós, pelo Civil Law, o direito codificado e escrito.

Quero provar que ainda há diferenças. Os Estados Unidos são governados por um presidente eleito pelo Partido Republicano, de cores conservadoras, o conhecido Donald Trump. A Espanha, ao contrário, por um primeiro-ministro progressista, o pouco lembrado Pedro Sánchez, pertencente ao Partido Socialista Operário Espanhol – PSOE. Parece o nome de uma agremiação eleitoral brasileira, não? Acertou.

Que tal, os Estados Unidos e a Espanha não são efetivamente a oposição um do outro? Como é possível que tais extremos cheguem à mesma conclusão?

O STF solicitou à Espanha a extradição do jornalista brasileiro Oswaldo Eustáquio, aqui investigado por suposta disseminação de desinformação e participação em atos antidemocráticos. No entanto, há poucas semanas, a Justiça espanhola negou o pedido. A razão? Havia “evidente conexão e motivação política” no pleito surgido. Além disso, a ausência da chamada “dupla tipicidade”, ou seja, a acusação formulada contra ele no Brasil não configura crime no país europeu, que garante a liberdade de expressão. A bem da verdade, nem aqui deveria configurar.

Uma monarquia, liberdade de expressão. Estranho, não? Se é assim, quem somos nós nesse cenário? Não parou por aí. Em resposta, o Tribunal, através de um de seus ministros, chegou a suspender o pedido de extradição espanhol direcionado a um cidadão búlgaro preso no Brasil, alegando “ausência de reciprocidade”. Estava recolhido por tráfico internacional de entorpecentes. De fato, não havia “reciprocidade”. Graças! Luzes se abriram sobre os telhados da Corte e a prisão domiciliar que havia sido concedida ao criminoso foi revogada. Em meio a isso, o Itamaraty, que deveria conduzir a diplomacia brasileira, restou esquecido.

No continente descoberto por Colombo, bons ventos não empurraram a nau do STF. No caso de Allan dos Santos, teve seu pedido de extradição recusado, e por razões semelhantes. O país mais poderoso do mundo entendeu que as opiniões emitidas pelo jornalista não configuram crime para a ordem jurídica ali estabelecida.

Até mesmo o mandado de inclusão na lista vermelha da Interpol foi descartado. Não só isso. Mais recentemente, houve decisão encaminhada ao Rumble para que bloqueasse, nos EUA, o perfil do “foragido”.

Ocorre que a rede social em questão é uma empresa ali sediada, e não está obrigada, a priori, a obedecer decisões oriundas do resto do mundo, ao menos sem anuência do Departamento de Justiça norte-americano. Para que isso que acontecesse, seria necessário antes observar o trâmite da carta rogatória, que por sua vez é regulada internamente pela Constituição da República Federativa do Brasil, de 1988 e pela Convenção Interamericana sobre Cartas Rogatórias, de 1975, trazida ao direito pátrio pela força do decreto nº 1.899, de 1996. Há ainda os termos do Acordo de Assistência Judiciária em Matéria Penal, celebrado entre o Brasil e os EUA, que chegou através do decreto nº 3.810, de 2001. Não são documentos jurídicos novos, é o que quero dizer.

Desconheço o vosso ilustre ponto de vista, prezado leitor, sobre os efeitos da extraterritorialidade nas decisões do Supremo Tribunal Federal que envolveram cidadãos brasileiros na Espanha e nos Estados Unidos. Peço escusas pela linguagem técnica. Nem mesmo cedo minha própria opinião agora, e nem sequer cito o nome dos ministros que assinaram e chancelaram as determinações. É melhor não dizermos, é melhor nem pensarmos. Contudo, devemos considerar que dois países muito diferentes e importantes, da Europa e da América, que adotam um o direito escrito, outro o direito consuetudinário, um que é governado pela direita, outro pela esquerda, um que gosta de touros, outro que não gosta de futebol verdadeiro, e que são tão opostos em tantas e tantas coisas, pensaram e disseram. Os dois, a mesma coisa.


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