(Divulgação)
COLUNA
Kécio Rabelo
Kécio Rabelo é advogado e presidente da Fundação da Memória Republicana Brasileira.
Kécio Rabelo

Na beira do vento

Na praia do Olho d’Água, o mar se agitava em ondas lentas, como quem respira fundo antes de falar.

Kécio Rabelo

Na praia do Olho d’Água, o mar se agitava em ondas lentas, como quem respira fundo antes de falar. Vando, garoto franzino, se sentou na areia e lançou ao céu sua pipa, batizada de Dora. Não demorou para perceber que não estava sozinho: a linha que puxava respondia, como se tivesse voz.

— Tu me queres no alto, mas também me prendes — sussurrou Dora, rangendo na tensão do vento.

Vando sorriu, meio assustado, meio cúmplice.
— Eu só te seguro para que não te percas.

A conversa, parecia, não era de brincadeira. Era pacto. Dora queria a liberdade, Vando queria a direção. O vento, diabólico, se metia entre eles, ora os unindo, ora tentando rasgar o fio que sustentava o encontro.

— O vento é traiçoeiro — disse a pipa. — Sopra como amigo, mas por vezes vem como inimigo, me sacode, me arrasta, me faz esquecer quem sou.

— Então me deixa ser teu peso, teu freio. — respondeu o menino.

Dora se debateu.
— Não me ponhas peso! O que é leve morre se carregado demais. Aprende: não se prende a liberdade com pedras.

Vando calou, olhando o céu se encher de nuvens. Era como ouvir uma confissão da vida. Dora, a pipa, lhe falava da paciência de esperar as rajadas passarem, da coragem de assumir os tombos, do orgulho de carregar até mesmo os erros como tatuagens no vento.

O menino se firmou, fechando os punhos na linha.
— Eu não te largo.

— Segura firme, mas não com medo. Segura como quem guia, não como quem acorrenta. — retrucou Dora. — Às vezes será preciso sacudir o fio, arrancar o nó, até cortar o que te ameaça.

O vento, provocador, soprou mais forte, e a pipa quase sumiu no horizonte. Vando tremeu, mas não largou. Dora, no entanto, gritou no ar:
— Mesmo que eu caia, não será o fim. Cair é também um modo de voar. As feridas fazem parte da história, e até a queda sabe apontar a direção.

Naquele duelo de sopros, de puxões e de silêncios, Vando entendeu. A vida é segurar e soltar. É confiar na linha dos propósitos, mas sem esquecer que, quando a liberdade é negada, é preciso cortar os fios e se reinventar.

E lá estavam eles: Vando, menino aprendiz da vida, e Dora, pipa inquieta, conversando como cúmplices e rivais, amantes e inimigos. Entre eles, o vento — ora aliado, ora traidor — ensinando que ninguém se perde de verdade. Porque sempre haverá uma corrente de ar pronta a indicar outro caminho para seguir voando.

O menino então percebeu que viver não é evitar os ventos contrários, mas aprender a dançar com eles. A cada puxão da linha, descobria que a vida não se faz só de avanços, mas também de pausas. Às vezes, o verdadeiro voo está em parar, se equilibrar, resistir ao sopro mais forte até que o céu volte a ser favorável.

Dora insistia: “não me temas, Vando. O erro não é inimigo; é mapa secreto, é estrada que também leva ao horizonte”. O garoto compreendeu que só conhece o sabor da liberdade quem tem coragem de se arriscar no espaço aberto, sem medo de quedas ou cortes.

E quando o sol começou a se deitar no mar, pintando de ouro as águas do Olho d’Água, Vando percebeu que a conversa com sua pipa era, na verdade, um espelho. Dora falava dele mesmo: de sua sede de liberdade, de sua força de recomeçar, de sua coragem de segurar e soltar. Entre a areia, a linha e o vento, Vando descobria que crescer é aprender a voar — mesmo com o temido sopro do destino a nos desafiar.


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