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COLUNA
Sônia Amaral
Sônia Amaral é desembargadora do Tribunal de Justiça do Maranhão.
Sônia Amaral

Uma homenagem aos heróis do cotidiano

O “Trágico” sabe, enfim, e aceita o homem com suas imperfeições e limitações. Por isso, entende que nunca teremos o tão decantado “Mundo Melhor”, mas sim o “Mundo Possível”.

Sônia Amaral

Thomas Sowell, filósofo, economista e professor em faculdades de elite nos Estados Unidos, autor de inúmeros livros e um dos escritores da minha predileção, no livro Os Intelectuais e a Sociedade, separa os homens entre “Ungidos” e “Trágicos”.

Já tracei, rapidamente, a diferença entre os Ungidos e os Trágicos em outro artigo que escrevi nesta coluna, porém é importante relembrar, caso o leitor não se recorde.

Para Sowell, nos espaços intelectualizados — como as universidades e os poderes da República, por exemplo — muitos se consideram e se comportam como “Ungidos”, à medida que desconsideram os conhecimentos populares, rejeitando-os por não possuírem confirmação científica, e se veem como detentores da verdade última e inquestionável.

Os “Ungidos” teriam surgido com o movimento iluminista dos séculos XVII e XVIII, tendo seu auge no século XVIII, também conhecido como o “Século das Luzes”. Eles ainda existem nos templos do saber e nas estruturas de poder, defendendo a ideia de que conseguem, com suas mentes brilhantes e instruídas, “iluminar” os demais com a razão, afastando-os das trevas da ignorância, do fanatismo religioso e da opressão política.

Assim, além de colocarem a razão no lugar das crenças como guia principal, também passaram a colocar o indivíduo no centro de tudo, considerando-o, em regra, uma vítima do sistema, cuja vontade deveria prevalecer sobre todas as coisas.

Em contrapartida, os “Trágicos” consideram que os seres imperfeitos que povoam a Terra — os Homo sapiens — jamais alcançarão a perfeição. Portanto, falar em razão pura e no domínio do conhecimento por apenas alguns poucos seria um erro em vários sentidos: primeiro, porque a razão pura não dá conta de toda a complexidade humana; segundo, porque o conhecimento está distribuído na sociedade, independentemente do grau de instrução de cada um.

Com efeito, os “Trágicos”, por não acreditarem na perfeição oferecida nem pela razão nem pelos homens, nutrem um ceticismo necessário e saudável sobre tudo e todos, ao mesmo tempo em que valorizam e acolhem positivamente todos os saberes, na tentativa sempre incompleta de buscar aquilo que pode ajudar a vida em sociedade.

O “Trágico” sabe, enfim, e aceita o homem com suas imperfeições e limitações. Por isso, entende que nunca teremos o tão decantado “Mundo Melhor”, mas sim o “Mundo Possível”.

Pois bem. Feitos esses esclarecimentos, quero dizer que me considero uma “Trágica” — logo, limitada e sempre aberta às muitas possibilidades que a vida nos apresenta. Resolvi abordar esse tema apenas para registrar meu contentamento ao assistir, em um programa televisivo de grande audiência — e que talvez provoque caretas entre certos intelectuais —, a história de uma família lutando para ganhar alguns prêmios que permitissem ao filho caçula, paraplégico, adquirir um computador mais potente para seu trabalho como programador.

Assisti ao programa na companhia da minha mãe, que não perde um episódio aos domingos. Nunca tinha tido curiosidade, por preferir assistir a filmes nos canais de streaming, mas confesso que valeu a pena. A experiência confirmou a tese de Sowell sobre os dois tipos de pessoas.

A família, composta por pai, mãe e o filho beneficiado, corria por uma loja e, em um tempo determinado, escolhia diversos bens: geladeira, fogão, televisão, cama, microprocessadores etc. O ideal era optar por produtos de maior valor agregado. Em seguida, o apresentador fazia perguntas de cultura geral, intercaladas com relatos sobre a vida da família, e, caso a resposta fosse a correta, iam acumulando valores correspondentes aos bens previamente selecionados. E foi nesse momento que percebi, com maior profundidade, a beleza interior do homem comum — normalmente um “Trágico”.

O casal tinha outros filhos. O pai era pedreiro e a mãe, que antes era apenas dona de casa, tornara-se ajudante de pedreiro por causa da condição do filho, que precisava de uma cadeira motorizada para se locomover. Eles conseguiram a cadeira, mas agora precisavam ajudar o jovem, formado na área de tecnologia da informação, a adquirir um computador mais potente para realizar programações mais sofisticadas. Essa era a razão da participação no programa.

Aquilo tudo, por mais “Trágica” que me considere, representou uma lufada de ar fresco em uma tarde quente. Aquilo tudo é a vida como ela é. Aquilo tudo é a essência e o que verdadeiramente importa. Aquilo tudo é uma lição sobre como podemos — e devemos — valorizar e lutar por coisas que, de fato, fazem a diferença.

Esse “mundo possível” não chegará enquanto perdermos dias e noites incontáveis em cursos, palestras, seminários e reuniões que não se tornem “carne”, como acontece na vida real de pessoas que acordam cedo, pegam o “busão”, comem suas marmitas, economizam cada centavo e correm atrás de uma chance em um programa como aquele — tudo para dar uma vida melhor, ao menos, aos seus familiares.

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