
O julgamento secular que nunca teve fim, mas possui inúmeras sentenças
Semana passada eu estava assistindo a uma aula de pensadores que falava sobra a obra Dom Casmurro e logo pensei: “Este é o julgamento mais longo da história do Brasil, ainda que na ficção”...
Semana passada eu estava assistindo a uma aula de pensadores que falava sobra a obra Dom Casmurro e logo pensei: “Este é o julgamento mais longo da história do Brasil, ainda que na ficção”...
Mais de um século debatendo se Capitu traiu ou não traiu.
Gerações inteiras tomando partido, defendendo posições, brigando em salas de aula. E ali me veio a inspiração de criminalista: que tal fazer as duas defesas?
Incrivelmente, Machado criou o caso jurídico mais fascinante da literatura. Um dilema onde ambos podem ser, simultaneamente, vítima e algoz e eu, advogada criminalista que não resisto a um desafio desses, decidi defender os dois.
Em defesa de Bentinho: Bentinho foi vítima de manipulação sofisticada desde a infância. Capitu sempre foi calculista.
Observem as evidências: Capitu sempre foi calculista. Aos 14 anos já arquitetava planos para impedir que Bentinho virasse padre. “Você tem medo? ”, perguntava ela, testando o terreno, medindo até onde podia ir.
Uma menina comum choraria, imploraria, todavia Capitu estrategicamente planejava.
Os famosos “olhos de ressaca” não eram apenas expressivos, eram instrumentos de sedução consciente, ela sabia exatamente o efeito que causava e usava isso para controlar situações. Bentinho, apaixonado e ingênuo, nunca teve chance contra essa manipulação.
O relacionamento com Escobar foi a jogada final. Capitu conquistou a confiança total da família, tornou-se íntima de todos, criou o álibi perfeito.
Quando Bentinho descobriu as semelhanças entre Ezequiel e o amigo, já era tarde, ela havia construído uma fortaleza de credibilidade.
Bentinho não foi agressor, foi um homem que descobriu ter vivido uma farsa e, devastado, tomou a única decisão possível: se afastar antes que a dor o destruísse completamente.
Em defesa de Capitu: Capitu foi vítima de um homem possessivo que destruiu sua vida baseado em paranoia.
Vejam os fatos: uma menina inteligente e determinada foi etiquetada como “dissimulada” simplesmente por não ser submissa.
Bentinho, criado para ser padre, nunca aprendeu a lidar com mulheres independentes. Confundiu personalidade forte com falsidade.
Capitu casou-se jovem e viveu sob constante vigilância. Cada gesto, cada olhar era interpretado como suspeito.
Quando finalmente encontrou amizade sincera na família Escobar, isso também virou motivo de ciúme.
As “semelhanças” entre Ezequiel e Escobar não passou de coincidência que virou obsessão na mente de um homem já predisposto à desconfiança, afinal crianças se parecem com várias pessoas e qualquer pai sabe disso.
Capitu nunca teve direito à defesa. Bentinho a julgou, condenou e executou a sentença social (separação e exílio) sem nem ao menos confrontá-la com as acusações. Que chance teve de se explicar?
Como podem observar, a genialidade de Machado foi criar um caso onde ambas as versões são juridicamente plausíveis, cada leitor vira júri e precisa decidir com base em sua própria interpretação dos indícios.
Se Capitu traiu, temos uma sociopata magistral que enganou todos ao seu redor. Se não traiu, temos uma mulher destruída pelo ciúme doentio de um marido possessivo.
A única certeza que temos é que mais de um século depois seguimos divididos entre o que se sabe e o que se sente.
A lição jurídica de Dom Casmurro nos ensina algo fundamental sobre justiça: quando há apenas uma versão dos fatos, não há julgamento possível.
Alguém percebeu que Bentinho usurpa todos os papéis? É simultaneamente vítima, acusador, testemunha e juiz?
O verdadeiro crime pode não ser nem a traição nem a falsa acusação, mas a ausência do contraditório.
Machado nos deixou um processo eterno onde nunca saberemos se houve crime, apenas duas pessoas que não conseguiram se entender além de suas próprias certezas.
E você? Já escolheu seu lado neste julgamento sem fim?
Sâmara Braúna
Advogada há 24 anos, criminalista, especialista em liberdade, garantias constitucionais, em violência de gênero e crimes sexuais. Pós-graduada em Direito Penal. Conselheira Estadual OAB/MA. Representante da OAB-MA no Comitê de Políticas Penais do Estado do Maranhão e integrante da lista tríplice para o cargo de Jurista do TRE.
Saiba Mais
As opiniões, crenças e posicionamentos expostos em artigos e/ou textos de opinião não representam a posição do Imirante.com. A responsabilidade pelas publicações destes restringe-se aos respectivos autores.
Leia outras notícias em Imirante.com. Siga, também, o Imirante nas redes sociais X, Instagram, TikTok e canal no Whatsapp. Curta nossa página no Facebook e Youtube. Envie informações à Redação do Portal por meio do Whatsapp pelo telefone (98) 99209-2383.