
O vendedor de chinelos e o amuleto de Deus
Por trás de toda sorte de condutas sociais, políticas, religiosas e comerciais existe uma filosofia.
Por trás de toda sorte de condutas sociais, políticas, religiosas e comerciais existe uma filosofia. Ou se esconde ela, para ser mais honesto. Filosofia em sentido usual. Na verdade, em todas as relações entre as pessoas, por menores que sejam, são revelados ou ocultados outros interesses além dos propósitos ali escancarados. Um rol de significados não ditos, mas compreendidos no inconsciente coletivo de todos que se envolvem na empreitada. Às vezes percebidos só por uma das partes.
É tudo quase um teatro. Na verdade, um teatro mesmo!
Acontece isso no mercado econômico, quando tentam te convencer que o sonho do brasileiro é ter casa própria e se argolar o resto da vida em prestações com juros que triplicam o saldo devedor; nas salas de aula, quando um professor frustrado fala mal de quem ele no fundo gostaria de ser; e até nos comportamentos dentro de casa, quando você tenta convencer sua mãe a trocar de carro dizendo que está velho só para satisfazer sua vaidade.
Enfim, há uma espécie de teatro projetado no comportamento de cada um que, a depender da acentuação, ganha conotações dignas de admiração. Ou de repúdio.
As maiores expressões sobre o assunto você encontrará no campo da política e da religião. Nestes palcos onde impera a arte de dominar o outro.
Pesquisadores da psicologia e das ciências cognitivas desenvolveram no final do século XX o que chamamos de Teoria da Mente.
Basicamente é a capacidade de compreender o que outras pessoas têm em mente, com crenças, desejos, intenções, perspectivas e emoções e, a partir daí, traçar comportamentos de empatia, moral, julgamentos e linguagens de si e do outro.
Trata-se de um preditivo de habilidade social inerente ao ser humano para garantir a própria sobrevivência. Para alguns, é o elemento chave que diferencia os homens dos demais animais.
Essa habilidade inerente ao homem só o diferencia dos demais primatas pelo grau de complexidade que consegue alcançar.
O medidor do ToM – como se chama o grau dessa teoria em cada um – pode partir do primeiro grau, em que se compreende sua própria consciência, até graus mais elevados e complexos, em que a pessoa percebe o que a outra pensa, sente ou prospecta diante de determinada situação e, com isso, antevê comportamentos do outro.
Um político com essa habilidade cria inimigos imaginários em comum – como os unidos contra o racismo ou proteção irrestrita aos animais -, se propõe como árduo defensor dessas causas e faz os mais vulneráveis sentirem nele a identidade que eles gostariam de ter.
Para ser mais realista, nos casos mais radicais, os políticos sabem da vulnerabilidade da população e aparecem na época das eleições doando peixes, cestas básicas, asfalto, festas e bugigangas incrementadas justamente por compreenderem que a mente do outro estará frágil e facilmente manipulável. Ele sabe que há uma ligação entre esses fatos supostamente benevolentes com a compreensão inconsciente de sobrevivência do outro. E nisso tudo, o manipulado não percebe que é apenas um instrumento de ambição pessoal. Seu grau de ToM é menos elevado.
Afinal de contas, um morador beneficiado com um asfalto de quinta categoria duas semanas antes das eleições desperta seu instinto de sobrevivência orientado pelo subconsciente com o seguinte recado: ruim com ele, pior sem ele.
Pronto, a armadilha se perpetua há séculos sem nenhuma inovação por conta dessa habilidade de elevado grau que o político tem da Teoria da Mente. Mas esse assunto de políticos não é novidade para ninguém. Religião também não.
Só que a globalização e a síndrome das pequenas autoridades deram azo aos oráculos de Deus e permitiram uma enxurrada de atores miraculosos que agora conseguem comprar seus relógios e bolsas de 100 mil reais usando a mesma técnica dos políticos com a teoria da mente.
Deus é um terceiro que o oráculo apresenta com impressões, desejos, intenções, vontades e conhecimentos que, no fundo, seduzem emocionalmente o outro, mas com uma intensão velada de que o mensageiro se projete propositadamente como o detentor da melhor mensagem para o coração dos inconsolados.
A figura de Deus passa a ser usada como o asfalto do político, porque o oráculo sabe - pelo seu alto grau de ToM - que todos os seus seguidores no final das contas atribuem a ele os louros da boa notícia do Salvador.
Há nas entrelinhas a não dita coroação do carteiro, que leva Deus como carta, mas se projeta como o verdadeiro coroado ao fazer fortunas na vulnerabilidade do outro, justamente por conhecer as fraquezas de seus consumidores. Diga-se, a mente e suas emoções. São lhes ofertadas misturas de dopamina, esperança e anestésico para as dores alheias, sucumbidas por uma estratégia que somente os detentores de ToM em grau complexo conseguem usufruir.
É por isso que um vendedor de chinelos é muito mais sincero.
Sua oferta do calçado escancara honestidade ao se demonstrar o interesse em se dar um produto e receber determinado valor, porque o vendedor, no seu interesse íntimo, pretende auferir lucro e sobreviver daquela renda. Tudo feito às claras, embora não dito.
Esse mesmo vendedor não precisa ter um grau elevado de sensibilidade sobre o pensamento e emoções alheias para se valer das vantagens da venda. Seu propósito final é claro para todos. Você compra sabendo que ele ganhará lucro sobre isso.
Há franqueza não manipulável. Sem utilização do chinelo para ter propósitos obscuros. E ainda assim pode servir de a Deus. Talvez até mais.
Portanto, toda relação humana no fundo guarda uma série de propósitos ao redor. A maioria velados.
Isso é comum para todos. O problema está no limite daquilo que não é revelado e no tamanho da máscara que é posta na frente. Os propósitos reais que podem prejudicar ou não o outro.
Uma casa financiada pelo menos é uma casa. Um carro trocado estará na sua garagem. Mas um político ou um oráculo religioso manipulador não te trará nada além de sensação dopaminérgica momentânea. Empolgação inebriante.
Por isso, muito cuidado quando alguém se propuser a figurar como amuleto de Deus. Suas reais intenções podem estar a léguas de distância.
Tudo isso rememora a recriação literária fiel ao espírito do pensamento de Martinho Lutero nos idos do século XVI, baseada no famoso simbólico diálogo entre Lutero e um sapateiro, muito usado pelos reformadores para ilustrar a doutrina da vocação cristã, central na teologia da Reforma:
Sapateiro:
— Doutor Lutero, agora que conheço a Palavra de Deus e creio no Evangelho, quero saber: como posso servir a Deus com minha vida?
Devo abandonar meu ofício de sapateiro?
Martinho Lutero:
— E por que haverias de fazer isso?
Sapateiro:
— Porque pensei que, para servir a Deus, seria necessário fazer algo mais “espiritual”. Ser pregador, monge, missionário talvez…
Lutero:
— Meu amigo, Deus não precisa que largues o martelo e o couro.
Ele quer que continues sendo sapateiro, mas que faças bons sapatos e os vendas por um preço justo.
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