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COLUNA
Luciana Sarney
Luciana Sarney Alves de Araújo Costa é advogada
Luciana Sarney

O Influenciador Digital e o Esvaziamento Ético da Sociedade Contemporânea: Notas Críticas sobre a Participação de Virgínia Fonseca na CPI das Bets

Quando a ética é convertida em oportunidade de marketing, o Direito deve intervir para restaurar os limites do aceitável.

Luciana Sarney

Atualizada em 17/05/2025 às 15h00

A participação da influenciadora digital Virgínia Fonseca na Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) que investiga a atuação das chamadas “bets” — plataformas de apostas on-line — reacendeu uma discussão urgente e complexa que permeia o Direito, a ética pública e os fundamentos civilizatórios da sociedade brasileira contemporânea. 

Em um espetáculo que mais se aproximou de uma encenação midiática do que de um instrumento de apuração séria, a presença da influenciadora expôs as fragilidades institucionais, morais e culturais que envolvem o fenômeno da influência digital no Brasil.

Virgínia Fonseca, atualmente uma das figuras públicas de maior alcance no país, compareceu à CPI para prestar esclarecimentos sobre sua relação contratual e publicitária com casas de apostas — prática que vem sendo objeto de ampla investigação pelo potencial lesivo que carrega, sobretudo entre as camadas mais vulneráveis da população. 

A despeito da seriedade da pauta e de seus gravíssimos impactos sociais, o comportamento da depoente foi marcado por uma retórica de falsa ingenuidade, escorada em gestos calculados, estratégias de autopromoção e até mesmo uso do espaço legislativo como palco para publicidade velada de seus produtos e marcas. Tais atitudes, embora não sejam novidade na dinâmica dos influencers, escancaram o grau de dessacralização da política e do direito como instâncias éticas de mediação da vida em sociedade.

A CPI das Bets, que deveria ser expressão da função fiscalizatória do Legislativo e da responsabilidade estatal em conter os danos sociais oriundos do mercado digital desregulado, pareceu, em diversos momentos, capturada pela mesma lógica que critica: a da espetacularização.

As risadas, os aplausos, as selfies, a troca de cortes para as redes sociais e a ausência de postura institucional revelaram não apenas uma sociedade desorientada em seus valores, mas uma representação política refém da busca por engajamento.

Do ponto de vista jurídico, a atuação dos influenciadores digitais como promotores de plataformas de jogos de azar exige, de forma inadiável, regulamentação eficaz e multidisciplinar. As apostas on-line — ainda que juridicamente travestidas de jogos de habilidade ou de entretenimento — representam práticas de alto risco social e econômico. 

A atuação dos influenciadores, remunerados para estimular o consumo desses serviços, insere-se numa lógica predatória, onde a vulnerabilidade informacional e econômica do consumidor brasileiro é sistematicamente explorada.

A Constituição Federal, em seu artigo 170, inciso V, ao tratar da ordem econômica, consagra o princípio da defesa do consumidor. 

A publicidade, especialmente quando dirigida a públicos amplos e indeterminados, deve respeitar os limites da boa-fé, da veracidade e da não-abusividade. O Código de Defesa do Consumidor, por sua vez, já reconhece a figura do “influenciador” como potencial fornecedor, sendo este corresponsável pela oferta e indução de consumo de produtos ou serviços nocivos ou enganosos. 

A responsabilização civil, administrativa e até penal, deve ser perseguida à luz de um sistema jurídico que não pode se curvar diante do capital simbólico das celebridades da internet.

A influência digital, por sua natureza, atua diretamente sobre os afetos e os impulsos das massas. Diferentemente das mídias tradicionais, a internet confere ao influenciador a aparência de proximidade, autenticidade e informalidade, criando um vínculo “parasocial” que potencializa os efeitos de suas mensagens. É nesse cenário que a atuação irresponsável de figuras públicas como Virgínia Fonseca deixa de ser apenas uma questão de “marketing” e passa a ser objeto do Direito. 

A ausência de transparência na divulgação de conteúdo patrocinado, a indução à prática de jogos compulsivos, e o uso de linguagem e estética lúdicas para promover serviços de risco são comportamentos que merecem repressão jurídica proporcional aos danos sociais que provocam.

Importa também reconhecer que tais figuras não são ingênuas. Cada palavra, cada gesto, cada roupa ou olhar são milimetricamente calculados por equipes de marketing que operam a partir de algoritmos de comportamento. A atuação no espaço público — inclusive em comissões parlamentares — é previamente roteirizada. E se há quem veja ingenuidade no comportamento da depoente, há quem entenda, com maior acurácia, que o verdadeiro espetáculo é a reprodução acrítica de um modelo de influência que se constrói sobre os escombros da dignidade social, da cultura e da educação.

É dentro desse vácuo de valores que cresce uma sociedade que celebra o sucesso fácil, o hedonismo desenfreado e a autoimagem em detrimento da coletividade, da ética e da verdade. O influenciador digital, nesse cenário, não é apenas uma figura pública: é o espelho de uma geração que troca conteúdo por curtidas, substância por engajamento e responsabilidade por monetização. 

Quando a ética é convertida em oportunidade de marketing, o Direito deve intervir para restaurar os limites do aceitável.

A CPI das Bets poderia ter sido um marco. Mas tornou-se mais um sintoma. O sintoma de uma sociedade rasa, dominada por filtros digitais, carente de filtros morais. A atuação dos influenciadores — e daqueles que os legitimam — precisa ser objeto de reflexão jurídica séria, interseccional e comprometida com os princípios fundamentais do Estado Democrático de Direito. 

Em tempos em que a influência se torna poder, é dever do Direito resistir à tentação da irrelevância.

 

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