São João, Cristo e o Paganismo
Em cada sotaque de Boi, em cada batuque de tambor e batida de matraca, vê-se vivo a perfeita simbiose entre costumes pagãos e símbolos cristãos, ou vice-versa.
“O misticismo preserva a sua saúde. Enquanto há mistério, há saúde; quando o mistério é destruído, surge a morbidez. O homem comum tem sido sempre são porque tem sido sempre um místico” – Chesterton
‘Conhecer os mitos é aprender o segredo da origem das coisas. Em outros termos, aprende-se não somente como as coisas vieram à existência, mas também onde encontrá-las e como fazer com que reapareçam quando desaparecem" – Mircea Eliade
Com essa frase certeira de G.K. Chesterton, um dos maiores escritores católicos de todos os tempos e com esse trecho do mitólogo Mircea Eliade, começo este ensaio tardio – escrevo este texto no dia 04 de Julho – sobre uma das mais importantes festas do catolicismo popular brasileiro: o São João.
Quando digo que os festejos juninos têm grande importância para o brasileiro, sobretudo para o nordestino, não estou exagerando. Depois de Nosso Senhor Jesus Cristo, São João é, sem dúvidas, o santo mais festejado no Brasil. Não seria nenhum exagero afirmar que as alegrias natalinas não sejam tão contagiantes quanto aquelas que o povo manifesta por ocasião da passagem do solstício de inverno, dia comemorado em honra ao “Senhor São João”.
O que, desgraçadamente, sempre acompanha a queima de fogos e o arder das fogueiras são as acusações de que os católicos ou qualquer um que ouse participar das festas juninas estariam participando, no ato, de um “festejo pagão”. Tisc.
De minha parte, além de umas poucas notas em meu perfil do Facebook, a forma menos tediosa de responder a tais acusações é com um breve suspiro seguido de um revirar de olhos. Sério; não há nada que desperte em mim maior preguiça que ter de repetir Ad nauseam as exatas mesmas palavras para quem não está disposto a fazer o menor esforço de compreender o que está sendo dito.
Contrariando os ditames da preguiça e tentando organizar algumas coisas que venho tomando nota ultimamente, escrevo as palavras que se seguem. Na esperança de que uma boa e sincera alma entenda e talvez até, não custa sonhar, venha a amar o alegre e tradicional São João nordestino.
“O catolicismo apoderou-se de festas e ritos pagãos”, dizem os acusadores. Em resposta, além dos olhos revirados, digo:sim, e daí? Não há nada de errado com isso. Muito pelo contrário. Sem essa absorção das culturas pagãs o cristianismo jamais teria durado tanto e se espalhado por tantos povos diferentes. A Igreja absorveu ritos pagãos porque só ela o podia fazer; por ser a fé católica maior e mais abrangente que o paganismo, pois o que é maior engloba e transcende o que é menor.
"Ain, isso aí tem origem pagã". E daí? Não há problema algum nisso. Muitos festejos que hoje comemoramos na Igreja Católica vieram sim, em parte ou integralmente, do paganismo. A questão é: continuaram pagãos depois de sua absorção pela Igreja? E a resposta é um sonoro NÃO. A Igreja integrou, manteve e santificou esses costumes e festas. Como Cristo disse a São Pedro: "Não chame de impuro aquilo que eu purifiquei".
Ao invés de celebrar o deus pagão Juno, por exemplo, celebramos São João, São Pedro e Santo Antônio, com as famosas festas juninas. Ao invés do deus Sol ser lembrado dia 25 de Dezembro, dedicamos este dia para lembrar do Nascimento do Salvador. E por aí vai. Quem rejeita um festejo ou costume por sua origem fora da Igreja, sem levar em conta o significado que tal costume recebeu dentro da Igreja, está precisando estudar melhor o desenvolvimento da religiosidade cristã.
A fé cristã sempre busca preservar os traços culturais de um povo, quando estes não negam os princípios da fé. É uma fé que respeita a identidade da nação e é, por isso mesmo, Universal. Aos que faltaram à catequese, o nome completo da Igreja Católica é Igreja Católica Apostólica Romana. O Católica aí vem do grego kata (junto) e holos (todo), isto é: universal, que abrange tudo e reúne a todos.
É belíssima, por exemplo, a história da Virgem de Guadalupe que apareceu para o índio Juan Diego como uma princesa Asteca falando, inclusive, em nauátle, a língua Asteca. O próprio nome Guadalupe significa “Perfeitíssima Virgem que esmaga a deusa de pedra”. Isso porque os Astecas adoravam a deusa Quetzalcoltl, uma monstruosa deusa a quem eram oferecidas vidas humanas em holocausto.
Como podemos perceber, a mensagem cristã é sempre adaptada, sem perder sua essência, ao povo local; preservando seus traços culturais. Vejam nossa querida padroeira chamada, não por acaso, de Mãe Negra.
Basta observar um pouco para notar que as festas juninas, embora tenham herdado costumes e rituais de outros povos, como rito pluvial trazido pelos portugueses, que consiste em lavar a imagem de São João no rio ou no mar; costume que foi recebido certamente dos árabes, têm um fundo completamente cristão. Tudo, desde a tradição de festejar o começo da estação agrícola, até os mastros erguidos em honra ao santo, é coberto por uma aura incontestadamente cristã.
Para falar só de um dos tantos ritos dessa grande festa, uma vez que meu espaço aqui é curto e suponho que os queridos leitores tenham mais o que fazer do que ficar lendo esta singela coluna, cito o ritual chamado de Batismo de fogueira que remete, como vocês podem imaginar, ao batismo de água cristão.
Nos festejos juninos do Nordeste há um antigo costume de origem celta – olha o paganismo,o aí de novo –, hoje em dia quase esquecido, onde famílias com afinidade criam um compadrio ao saltar a fogueira na noite de São João. O chamado batismo de fogueira, que não precisa de um afilhado como no rito iniciático católico, acontece após os futuros compadres saltarem em forma de cruz por três vezes a fogueira que fora acessa pelo Pater familias no dia 23 de Junho, dia de São João, ou no dia 29, na festa de São Pedro. Saltam um de cada vez logo após fazerem o seguinte juramento: "Juro por São João, por Santo Antônio e por São Pedro e por todos os santos do céu..." E ao saltarem recitam o versinho:
"São João dormiu,
São Pedro acordou,
Vamos ser compadres
Que são João mandou".
A partir de então, ambos passam a ter um laço (muitas das vezes mais forte que o de sangue) que une as famílias e fortalece a comunidade. Esse costume serviu, durante muito tempo, para unir a comunidade rural e fortalecer as relações sociais. Este ano tive a alegria de presenciar o rito do batismo de fogueira presidido pelo frei Pablo na Paróquia Nossa Senhora da Conceição, Anil, aqui em São Luís. Eu mesmo fiz o rito no dia de São Pedro no sítio onde moro; estreitando laços com um caro amigo que agora é meu compadre de fogueira.
Poderia falar durantes parágrafos e mais parágrafos dos rituais e símbolos cristãos contidos nos festejos juninos; a morte e ressureição do Boi, o mastro erguido em linha reta, indo da terra para o Céu, a tradicional fogueira com sua luz afugentando os demônios... etc etc etc. Mas como me falta espaço e acredito já ter demonstrado meu ponto, vou parar por aqui prometendo escrever novamente sobre o assunto.
O fato é que nos festejos juninos pode-se observar com satisfação que o mito ainda faz parte do homem moderno, mesmo que quase esquecido pelos grandes centros e jogado pela janela dos apartamentos de classe média. Em cada sotaque de Boi, em cada batuque de tambor e batida de matraca, vê-se vivo a perfeita simbiose entre costumes pagãos e símbolos cristãos, ou vice-versa. Uma atualização do tempo sagrado e dos símbolos míticos; como, aliás, acontece em toda Santa Missa.
Aos interessados e sinceros leitores, o livro "Mito e Realidade", do Mircea Eliade, mesmo não sendo uma obra sobre esse tema em específico, ajuda bastante na compreensão do assunto. É impossível lê-lo e não perceber que na Igreja Católica tem-se uma genuína preservação do mito e da história sagrada.
Reproduzo aqui, pedindo perdão aos leitores apressados, alguns trechos dessa obra que servem bem ao nosso propósito:
“Ao passo que um homem moderno, embora considerando-se o resultado do curso da História Universal, não se sente obrigado a conhecê-la em sua totalidade, o homem das sociedades arcaicas é obrigado não somente a rememorar a história mítica de sua tribo, mas também a reatualizá-la periodicamente em grande parte.
[...]
“Claro que, tendo o 14 de julho se convertido na data nacional da República Francesa, a tomada da Bastilha é comemorada anualmente, mas o acontecimento histórico propriamente dito não é atualizado. Para o homem das sociedades arcaicas, ao contrário, o que aconteceu ab origine pode ser repetido através do poder dos ritos. Para ele, portanto, o essencial é conhecer os mitos. Essencial não somente porque os mitos lhe oferecem uma explicação do Mundo e de seu próprio modo de existir no Mundo, mas sobretudo porque, ao rememorar os mitos e reatualizá-los, ele é capaz de repetir o que os Deuses, os Heróis ou os Ancestrais fizeram ab origine. Conhecer os mitos é aprender o segredo da origem das coisas. Em outros termos, aprende-se não somente como as coisas vieram à existência, mas também onde encontrá-las e como fazer com que reapareçam quando desaparecem" – Mircea Eliade, Mito e Realidade, pág. 17-18.
Despeço-me, mas sem antes recomendar fortemente o estudo em três volumes do Alceu Maynard Araújo, Folclore Nacional. Livro recomendadíssimo para os que, assim como eu, são interessados em festas, bailados, mitos e lendas deste Brasil de meu Deus.
Viva São João!
Paço do Lumiar, dia de Santa Isabel de Portugal.
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