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COLUNA
Kécio Rabelo
Kécio Rabelo é advogado e presidente da Fundação da Memória Republicana Brasileira.
Kécio Rabelo

Padre Bráulio, missionário da aproximação

Depois dos dias difíceis que a humanidade viveu a partir de 2020 com a explosão da pandemia da COVID-19, acreditava-se em um “novo normal”.

Kécio Rabelo

Depois dos dias difíceis que a humanidade viveu a partir de 2020 com a explosão da pandemia da COVID-19, acreditava-se em um “novo normal”. Alguns, mais otimistas, pregavam um novo contrato social de relações mais próximas e comportamentos aprimorados, haja vista os destroços psicológicos e estruturais que a pandemia nos legou. Não sei se chegaremos ainda a um dos dois, mas é fato que a história recente da humanidade fica marcada entre antes e depois desse episódio de terríveis impactos.

Muito longe, ou muito perto de nós, todos sentimos a partida de alguém. Das formas mais devastadoras, fomos privados de tantos, tão significativos, referências de vida, parentes, familiares, vidas das nossas vidas, como tocados fomos pela perda de gente que sequer conhecemos, mas às quais nos irmanamos, nos reconhecendo na dor pelo muito que nos impactaram. Feridas ficaram abertas em tantas milhares de famílias que sequer puderem velar seus entes, tornando a despedida ainda mais dolorida. Mas muito se já disse acerca disso e, vez por outra, surgem estudos buscando elucidar pormenores dessa tragédia global.

Parti daí para situar a palavra ausência. No dicionário da língua portuguesa, ela significa “afastamento temporário, desaparecimento”. Foi nessa correnteza de incertezas e medos, de afastamentos e isolamentos, que desapareceu de nosso convívio, do nosso viver, Padre Bráulio Ayres. Era um dia como hoje, 18 de maio, no início da manhã. A notícia chegou como um golpe forte, ao mesmo tempo, com uma sombra de desconfiança e porque não admitir, trazendo certa revolta.

Passados quatro anos de sua partida, vale uma vez mais revisitar a vida e legados daquele que, muito mais que um sacerdote exemplar, semeou em cada um com quem conviveu práticas e ideias imorredouras, com a doçura dos que professam o bem e a justiça como valores inalienáveis.

Quem foi Padre Bráulio? Não pretendo traçar uma biografia desse padre negro, homem simples nascido em Penalva, no povoado Santo Antônio, filho de Faustino e Conceição e o oitavo de onze irmãos. Pretendo, contudo, falar de presença e ausência. Desse mistério posto ao nosso olhar como desafio e maior dor humana, que é o desaparecimento dos que amamos, consagrados na separação física, na ausência “para sempre”.

Da presença, talvez seja redundante evocar a marcante atuação de Padre Bráulio na Igreja de São Luís e do Maranhão, onde fincou seu trabalho pastoral com os jovens, os operários e o povo negro, vocacionados, e, sobretudo, como “cuidador de feridas” de toda gente, pobre ou rica, branca ou preta, da igreja, dos terreiros ou de lugar algum. Desejo evocar, como memória, o homem que descobriu e revelou um humano jeito de ser padre, de exercício da missão cristã.

Em algum momento, por entre as curvas do caminho, alguém foi tocado por aquele olhar e por seu sorriso, quer no Maranhão ou em algum outro lugar do mundo, onde seus pés missionários pisaram. Aquela presença despretensiosa, firme nos propósitos  e completamente “desleixada” dos protocolos.

De sua presença, ficou o prazer de tê-lo. Do inspirador prazer do convívio, aprendizados e lembranças que, hoje, embalam a saudade de uma ausência que o tempo nos impôs. Ao nos remeter à finitude da vida, essa ausência tem algo de mistério, e nem por isso deixa de ser cruel. Nos leva, quem sabe, àquela experiência dos discípulos da primeira comunidade que, após o desaparecimento do Mestre Morto e ressuscitado, o reencontram em seus gestos e experimentam sua presença na ausência. Sim, porque a ausência é também a presença que se prolonga, ainda que na saudade, o que torna permanente o que é transitório, apenas visto talvez sob outra perspectiva.

Aquelas palavras animadoras, carregadas de esperança, de entusiasmo com a formação do povo, com a transformação do mundo e o equilíbrio social e a opção nítida por uma vida simples, sem apegos e sem territórios definidos são marcas e testemunhos que certamente vêm à memória, sob forma de reflexão, quando lembramos de Bráulio.

Mas, de tudo isso, o que podemos testemunhar com alegria, é sua capacidade de, apesar de ser presença animadora de multidões, não ser um homem de “atacados”. Sua percepção aguçada para o sofrimento e as vulnerabilidades humanas fizeram dele um especialista em gente, de ouvido largo e coração escancarado para a acolhida e o perdão. Parece que tinha defeitos, desses que carregamos todos nós, tão complicados de serem considerados em meio à grandeza de suas virtudes.

Tornou-se uma referência na Igreja e fora dela, alcançou inalcançáveis, viveu e apresentou um rosto da fé impregnado pelo seu tempo e lutas de sua época, atualizando o sentido do viver, da missão evangelizadora e sinalizando o método de ser presença. Sua paróquia foi o mundo; seus paroquianos, todos com os quais encontrou pelo caminho para um café ou taça de vinho, seu plano pastoral, sempre acompanhados de um sorriso aberto e franco; sua pregação, a vida ambulante sob as havaianas nos pés, e o exercício do seu ministério e missão maiores - aproximar pessoas, reunir vidas e gerar comunhão. Comunhão que abraça, compreende, acolhe, perdoa e tanto bem faz ao coração. Muito, muito mais se pode dizer de Padre Bráulio e das marcas deixadas por ele. Mas este tempo é de agradecer.

Passados aqueles dias de calvário prolongado, onde a morte ganhou a pauta e escancarou a fraqueza da humanidade, fazendo desaparecer famílias inteiras e intimando a todos para o asfaltamento e um novo modo de vida, fazemos memória do padre negro do Maranhão, missionário da aproximação.

Deus seja louvado sempre por sua presença entre nós e pela ausência que, agora compreendo, se eterniza com seu testemunho e exemplo. Por aqui, seguimos cantando como em tantas vezes nas Comunidades de Base, inspirados por ele, por esse trajeto tão singular e pela capacidade de ressignificar o prazer do convívio e a força da fé, oferecendo sorrisos e generosidade, com o mesmo sentido de quem estende as mãos, professa e faz o bem sem olhar a quem...

“Não há por que ficar com medo e sem saber

O que vai ser do mundo amanhã?

Quem da fome, (ou da guerra)  vai sobreviver?

Está em nós a luz do amor que vai vencer!”

Padre Bráulio, presença e presente! Gratidão, sempre!

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