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COLUNA

Gabriela Lages Veloso
Escritora, poeta, crítica literária e mestranda em Letras pela Universidade Federal do Maranhão (UFMA).
Gabriela Lages Veloso

Sem data

Quando se pensa em literatura brasileira, um dos primeiros nomes que se vêm à mente é Machado de Assis.

Gabriela Lages Veloso

Atualizada em 10/11/2023 às 10h31

Quando se pensa em literatura brasileira, um dos primeiros nomes que se vêm à mente é Machado de Assis. Isso porque o autor deixou um rico acervo de contos, poemas, crônicas, peças teatrais, romances, críticas literárias e traduções. Porém, o seu maior legado não se encontra na abundância de seus textos, mas sim na genialidade dos mesmos.

Segundo o renomado crítico literário Harold Bloom (2003), Joaquim Maria Machado de Assis pode ser considerado um “gênio da ironia”, visto que “jamais ataca a sociedade diretamente, mas através de uma comédia astuta e um niilismo intimidante”. Através de uma linguagem elegante e extremamente irônica, os textos machadianos tecem uma caricatura da sociedade brasileira, apresentando as suas faltas, vícios e contradições.

Ilustração: Bruna Lages Veloso
Ilustração: Bruna Lages Veloso

Vejamos um exemplo. Histórias sem data (1884) é um livro que reúne 18 contos de Machado. É importante ressaltar que esses contos foram publicados, primeiramente, ao longo de 1883 e no início do ano seguinte, nos periódicos Gazeta de Notícias, A Estação, O Álbum e Gazeta Literária. Em 1884, foram publicados no formato de livro, com um título certeiro.

Histórias sem data (1884) é uma prova da atemporalidade de Machado de Assis. Na primeira edição da obra, o autor fez um comentário sobre a escolha do título: “o meu fim é definir estas páginas como tratando, em substância, de coisas que não são especialmente do dia ou de um certo dia, penso que o título está explicado”. Ora, mas o que não pode ser datado? Essa pergunta suscita várias respostas que serão apresentadas, no decorrer dos contos.

Vale salientar que, apesar da singularidade de cada uma das dezoito narrativas, existe um fio condutor que perpassa todo o livro: a alma humana. Ou melhor, os desvios da alma humana. Por isso, as principais temáticas abordadas são: vaidade, traição, avareza, mentira, comodismo, loucura, frustração, eruditismo e contradição. Vamos às narrativas.

Dois aspectos unem os contos Uma senhora e Fulano. O primeiro trata-se dos títulos que remetem a pessoas anônimas. Se por um lado, o artigo indefinido “uma” remete a qualquer mulher, por outro, o substantivo “Fulano” faz referência a todo e qualquer indivíduo (o nome apenas foi iniciado com letra maiúscula para remeter a um substantivo próprio). O segundo aspecto se refere à vaidade. Os protagonistas D. Camila e Fulano são reféns de suas reputações. D. Camila amava “tanto a mocidade e a beleza, que atrasou o seu relógio”, ela se recusava a envelhecer, para isso utilizava vários artifícios. Já Fulano só realizava atos de caridade que pudessem ser públicos, estampados nos jornais. A aparência, para eles, é tudo.

Por outro lado, os contos Singular ocorrência, A senhora do Galvão, Primas de Sapucaia! e Noite de Almirante apresentam outra mácula da humanidade: a traição. Esse tema é recorrente na escrita machadiana (podemos citar o romance Dom Casmurro (1899), por exemplo). Já os protagonistas de O lapso e Anedota Pecuniária são retratos fiéis da avareza - o primeiro era um homem que não tinha consciência do que era dever algo a alguém (e por isso, devia a todos), já o segundo trocava o amor das afilhadas (ou melhor, o medo de ficar sozinho) por dinheiro, pois “o melhor dos bens é o que se não possui”.

Galeria Póstuma é um conto que é, ao mesmo tempo, carregado de humor, sarcasmo, ironia e tristeza, uma vez que o seu protagonista viveu uma mentira. Durante toda a sua vida, ele tentou agradar a todos e nunca disse o que realmente pensava (nem mesmo ao seu parente mais próximo). Mas, todos os dias escrevia suas verdades secretas em diários, que vieram à tona após a sua morte. Por sua vez, a protagonista do Capítulo dos chapéus não tolera nenhuma mudança no seu mundo particular. Ela é uma caricatura do comodismo. Em contrapartida, o conto A segunda vida aborda o tema da loucura, de forma criativa e bem-humorada.

Outra questão que é apontada no livro, através dos contos Último capítulo, Cantiga de esponsais e Manuscrito de um sacristão é a frustração. São felicidades, legados e amores frustrados. É válido destacar que um dos maiores males da sociedade, apresentado por Machado, é o eruditismo: o indivíduo tem a mania de exibir o conhecimento como um troféu, a tal ponto que pensa saber de tudo. Isso acontece no Conto Alexandrino, uma narrativa repleta de críticas sociais desde o plágio até aos testes cruéis realizados em animais, tudo em nome da ciência (filosofia). Mas, sem dúvida, o conto Ex-cathedra é um exemplo perfeito de eruditismo, visto que remete à opinião de uma autoridade máxima, que não pode ser questionada.

Contudo, o ponto mais interessante das Histórias sem data (1884) é a contradição. O livro começa e termina com esse tema. No primeiro conto, intitulado A igreja do Diabo, nos deparamos com uma narrativa peculiar: o próprio diabo tem a ideia de fundar uma igreja pois, na sua opinião, o ser humano tende muito mais ao profano do que ao sagrado. No entanto, após o experimento, ele ficou pasmo com a “eterna contradição humana”. Já no último conto do livro, denominado As academias de Sião, em uma passagem cômica, o rei fica abismado com as opiniões dos membros de uma das academias, pois na ausência uns dos outros eles se chamam de “multidão de camelos”, mas quando estão reunidos se exaltam como “a claridade do mundo”.

Histórias sem data (1884) é como um espelho da sociedade, pois apresenta não o que se quer ver, mas o que de fato acontece. As mazelas, os desvios, as imperfeições e mentiras são trazidas à tona. O lado obscuro da alma humana é exposto. Esses temas não podem ser fixados em datas, pois não se restringem à época de Machado de Assis, pelo contrário, permanecem atuais.

Por isso, Harold Bloom (2003) afirma que a “genialidade de Machado de Assis é manter o leitor preso à narrativa, dirigir-se a ele frequente e diretamente, ao mesmo tempo em que evita o mero ‘realismo’ (que jamais é realista)”. Pensar sobre esse livro é refletir sobre nós mesmos, como somos ou podemos ser, pois o ato de observar a realidade nos impõe a tarefa de enxergar o outro lado. Afinal, esse é um dos papéis da literatura: apresentar novas rotas e possibilidades.

 

REFERÊNCIAS:

 

ASSIS, Machado de. Histórias sem data [1884]. Edição preparada por Marta de Senna. 2ª ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2022.

 

BLOOM, Harold. Gênio: os 100 autores mais criativos da história da literatura. Tradução de José Roberto O'Shea. Rio Janeiro: Objetiva, 2003.

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