Dois historiadores e a paideia brasileira
O tempo que irremediavelmente se esvai como que vai ganhando contornos mais nítidos, e uma nova época tem suas comportas drasticamente abertas, sem que, todavia, ninguém o perceba.
O tempo que irremediavelmente se esvai como que vai ganhando contornos mais nítidos, e uma nova época tem suas comportas drasticamente abertas, sem que, todavia, ninguém o perceba. São esses os pensamentos que me assaltam com a notícia do falecimento de dois mestres eminentes de nosso tempo, os últimos representantes de um espécime que se esvai com o tempo ou, antes, que o tempo faz desaparecer. Não bem de nosso tempo, em verdade, pois que forjados por outros tempos, com o seu grau de indigência como quaisquer outros da aventura humana, mas seguramente bem mais civilizados que os nossos, no sentido da busca intuitiva de uma paideia para a edificação de uma civilização brasileira. Refiro-me, mais propriamente, ao passamento de duas figuras admiráveis no que toca aos estudos brasileiros — os historiadores José Murilo de Carvalho (1939 – 2023) e Vamirech Chacon (1934 – 2023).
Egresso da ciência política, foi, porém, no campo da historiografia que José Murilo de Carvalho conheceu os bons ventos da arte escrita. A grande historiografia — de um Ranke, de um Mommsen, de um Bloch, de um Bouchet — conserva o seu rigor metodológico e o seu frescor literário na dimensão eminentemente narrativa de sua concepção e na excelência estilística de sua composição. José Murilo de Carvalho bebeu das melhores fontes e, assim, se fez o intérprete por excelência do impacto mental que sobre nós teve a ruptura política do 15 de Novembro, com o que redigiu duas obras modelares: Os bestializados — o Rio de Janeiro e a república que não foi (São Paulo: Companhia das Letras, 1987) e A formação das almas — o imaginário da república no Brasil (São Paulo: Companhia das Letras, 1990). Essa “república que não foi” o impeliu a traçar o grande painel do Brasil Império — levando adiante as investigações de João Camilo de Oliveira Torres — no alentado volume A construção da ordem — a elite política imperial. Teatro de sombras — a política imperial (13ª ed., Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2020). Mais recentemente, deu-nos o seu D. Pedro II (São Paulo: Companhia das Letras, 2007), obra madura, breve perfil em que avultam as qualidades de estadista do grande monarca, nem sempre correto em suas decisões, mas sempre operoso na administração dos negócios públicos.
Vamireh Chacon é figura pinacular do culturalismo, escola filosófica que se propõe a entender a psicologia, tanto individual quanto social, à luz do conjunto amplíssimo de elementos que constituem o fenômeno cultural. O culturalismo teve em Miguel Reale o seu arauto e propagador, no século passado, e em Tobias Barreto, o seu modelo perfeito e acabado. Vamireh Chacon foi, por toda a vida, um herdeiro egrégio da famosa “Escola do Recife”, capitaneada por Tobias Barreto e Sílvio Romero, responsáveis por aquele “bando de ideias novas” que sacudiram o Brasil de fins do Segundo Reinado.
Monárquico e tradicionalista, muito pouco teria a recomendar de tais “ideias novas” — que, envelhecidas, se prestam hoje ao esbulho do que resta de sanidade nos últimos epígonos da velhacaria pós-moderna. Mas me amparo no meu mestre António Sardinha, cuja inteligência penetrante soube discernir, no lodaçal do “século estúpido” (Léon Daudet), o que havia de genuinamente português em Quental, Garrett e Herculano. O sopro lírico de brasilidade que permeia a obra dos dois prodigiosos sergipanos é o elã criador com o qual Vamireh Chacon teceu a sua obra de historiador e cientista político. Citemos, a título de exemplo, as grandes sínteses consubstanciadas nos clássicos História dos partidos brasileiros (2ª ed., Brasília: UnB, 1985) e Formação das ciências sociais no Brasil — da Escola do Recife ao Código Civil (São Paulo: Unesp, 2008), bem como o seu Gilberto Freyre — uma biografia intelectual (São Paulo: Companhia Editora Nacional, Brasiliana, 1993), em que rastreou as influências intelectuais e espirituais do mestre de Casa-grande & senzala e Nordeste.
Quando do falecimento do grande patriarca de minha geração — “geração” terrivelmente “perdida” —, o filósofo e escritor Olavo de Carvalho, de nome tão burilado pelo relincho das patrulhas ideológicas, o meu bom amigo Ronald Robson se adiantou em proclamar que tal passamento em nada mudava a ordem de seu próprio labor intelectual, na medida em que Olavo de Carvalho continuaria a ser o mesmo “objeto” de análise e orientação em seus estudos. Lição preciosa, a indicar justamente em que consiste a “imortalidade” de um clássico, “objeto” sempre atual, de ressonâncias sempre fecundas — perpetuamente vivo, diríamos quase.
O grande poeta cearense que foi Gerardo Mello Mourão — outro que pagou caro à estupidez das patrulhas ideológicas a ousadia do pensamento independente —, contou, em entrevista, episódio revelador da civilidade dos “clercs” de antigamente: certa feita, a seu lado, o jornalista Osvaldo Peralva perguntou ao escritor e memorialista Gilberto Amado, sergipano também ele, em qual época gostaria de ter vivido, se lhe fosse dada a escolha. Rápido como uma navalha, o autor de A chave de Salomão respondeu — “em qualquer época, desde que em tempo de decadência”. É um chamamento a nós todos à aventura da inteligência e da grandeza humana.
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