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COLUNA
Allan Kardec
É professor universitário, engenheiro elétrico com doutorado em Information Engineering pela Universidade de Nagoya e pós-doutorado pelo RIKEN (The Institute of Physics and Chemistry).
Coluna do Kardec

A relação dos computadores com os sonhos

Especialistas em aprendizado de máquina lutam para lidar com o "overfitting" em redes neurais artificiais. A evolução resolveu esse problema nas redes neurais biológicas com nossos sonhos, diz uma nova teoria.

Allan Kardec

Atualizada em 29/08/2023 às 16h00
 
 

O mundo está encantado e assustado com o fato de máquinas estarem fazendo o que todos os cientistas trabalhamos por mais de meio século: que elas aprendessem. No entanto, o aprendizado de máquina encontra dificuldades com o chamado "overfitting" em redes neurais artificiais: às vezes, elas acabam não aprendendo as novidades. Afinal, ela é feita pra isso: a partir de um monte de imagens de flores, reconhecer uma nova flor. 

Overfitting é um termo usado em ciência de dados para descrever uma situação em que um computador "aprendeu" tão bem os dados que se torna inadequado para prever novidades. Bom lembrar que “fitting” é vestir em inglês e “over” é muito, ou seja, overfitting é como ajustar tanto a roupa que não cabe mais em ninguém, só em você!

De fato, o overfitting é a pedra no sapato dos especialistas em aprendizado de máquina, que desenvolveram uma série de técnicas para lidar com isso. As redes neurais, assim como outros algoritmos de aprendizado de máquina, são suscetíveis ao overfitting, especialmente se forem muito se os dados contiverem, além de flores, montanhas ou panelas... máquina não é gente, é máquina.

Por outro lado, psicólogos explicam que o cérebro humano por vezes associa eventos que possuem pouca ou nenhuma conexão entre si. Para os cientistas da computação, este é um exemplo de "overfitting" - utilizando detalhes irrelevantes para construir um modelo. O mesmo acontece com as redes neurais artificiais. Elas aprendem detalhes relevantes, mas também irrelevâncias.

Isso nos leva a questionar como o cérebro humano lida com o overfitting. Nossa experiência cotidiana pode ser extremamente repetitiva, então como o cérebro generaliza dessas experiências únicas para outras situações?

Hoje, há uma resposta possível devido o trabalho de Erik Hoel, neurocientista da Universidade Tufts, em Massachusetts. Segundo Hoel, o cérebro humano evita o overfitting sonhando. Ele advoga que o sonho evoluiu especificamente para lidar com esse problema, comum a todas as redes neurais. Se a teoria estiver correta, ela poderia responder a um dos grandes enigmas da neurociência: por que sonhamos?

Muitos psicólogos e neurocientistas já especularam sobre a origem e o papel dos sonhos. Freud sugeriu que eles serviam como uma forma de expressar frustrações ligadas a tabus. Já o brasileiro Sidarta Ribeiro defende a necessidade dos sonhos no livro “O Oráculo da Noite”, em que afirma que abandonamos a nossa ancestralidade em nome da superficialidade materialista.

Outros pesquisadores sugeriram que os sonhos funcionam como um tipo de termostato emocional que nos permite controlar e resolver conflitos emocionais. No entanto, essa teoria é contestada pelo fato de que muitos sonhos não possuem um forte conteúdo emocional, sendo comuns sonhos emocionalmente neutros.

Alguns ainda defendem que os sonhos são parte do processo usado pelo cérebro para consolidar memórias ou se esquecer seletivamente de memórias indesejadas ou desnecessárias. Essas teorias, porém, esbarram no fato de que a maioria dos sonhos não contém detalhes realistas, apresenta uma estranha qualidade alucinatória e frequentemente contém sequências inéditas. 

A nova teoria diz que o propósito dos sonhos é auxiliar o cérebro a fazer generalizações a partir de experiências específicas. E eles fazem isso de uma maneira semelhante aos especialistas em aprendizado de máquina que evitam o overfitting em redes neurais artificiais.

Ora, uma das formas mais comuns de lidar com o overfitting é adicionar algum ruído ao processo de aprendizagem, dificultando que a rede neural artificial foque em detalhes irrelevantes. Na prática, os pesquisadores adicionam ruído às imagens ou alimentam a máquina com dados corrompidos.

Os sonhos desempenhariam a mesma função para o cérebro, afirma Hoel: "O objetivo é fornecer simulações 'fora de distribuição' especificamente para evitar o overfitting e melhorar a generalização". Ele chama essa ideia de hipótese do cérebro sobreajustado e destaca que há muitas evidências a seu favor.

Por exemplo, uma das melhores maneiras de induzir sonhos é jogar longas sessões de jogos simples e repetitivos, como video games. Isso cria as condições nas quais o cérebro pode se tornar super treinado para a tarefa. Em nosso laboratório, temos um trabalho em que fazemos esse exercício para “ler”, a partir dos dados cerebrais, o que a pessoa sonhou. Veja a imagem abaixo, quanto mais vermelha a região, mais atividade ela terá – esse é o princípio. 

 
 

É por isso que esse tipo de atividade induz sonhos. Esses sonhos não são replays lembrados de jogos de computador, mas tendem a ser esparsos em detalhes e com qualidades alucinatórias. É esse "ruído" que ajudaria o cérebro a generalizar a partir do jogo. Seria também por essa razão que as pessoas podem melhorar seu desempenho após uma boa noite de sono.

A teoria de Hoel também poderia ser usada para entender melhor os tipos de erros que indivíduos privados de sono tendem a cometer e, em seguida, atenuá-los. "Se for verdade que os cérebros privados de sono estão sobrecarregados, eles estarão propensos a cometer erros de maneiras estereotipadas", diz ele. 

Este é um trabalho fascinante. Até agora, a maioria das teorias cognitivas tratou os sonhos como um epifenômeno, um subproduto do sono sem função significativa. A teoria de Hoel inverte essa visão, atribuindo uma função biológica aos sonhos e, consequentemente, uma justificativa para sua evolução.

Allan Kardec Duailibe Barros Filho, PhD pela Universidade de Nagoya, Japão, professor titular da UFMA, ex-diretor da ANP, membro da AMC, presidente da Gasmar.



 


 

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