Um centenário
Este ano de 2023 marca o centenário de morte de um brasileiro que dipensa apresentações — ou assim deveria ser. Quem já não ouviu falar de Rui Barbosa?
Este ano de 2023 marca o centenário de morte de um brasileiro que dipensa apresentações — ou assim deveria ser. Quem já não ouviu falar de Rui Barbosa? O grande jurista e causídico; o campeão da democracia e das liberdades individuais; o defensor do primado do direito sobre a força; o polemista, bizantino por certo, da Réplica; a “Águia de Haia”; etc. Mas quem foi mesmo Rui Barbosa?
O incomparável ensaísta que foi Otto Maria Carpeaux, no instigante estudo sobre Jacob Burckhardt com que inicia o seu livro A cinza do Purgatório (Ensaios reunidos — 1942-1978. Rio de Janeiro: Topbokks / UniverCidade, 1999, p. 79), publicado originalmente em 1942, faz menção à “glória” — esse “conjunto dos mal-entendidos que se criam em torno de um nome” — de um grande escritor, encerrado solenemente na forma de um “busto de gesso” ou no desenho pomposo das folhas de guarda das suas Obras Completas, à disposição de todos e de ninguém. Não é um problema para nós. É algo que pertence à “história”.
Tal realidade ingrata talvez ainda possa ser mitigada por uma efeméride, que ofereceria ocasião para enquadrar a personalidade de um morto ilustre no âmbito da história de seu país. Não é pouca coisa.
Rui Barbosa é autor brasileiro que possui uma das mais completas e substanciosas fortunas críticas. A estatura dos intelectuais que lhe dedicaram algum estudo é algo que não pode ser contrastado. San Tiago Dantas o considerava “o ideólogo” da “ascenção da classe média” (Figuras do direito. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio, 1962, p. 24). Miguel Reale, em estudo de juventude, já destruía o mito do Rui intransigentemente liberal (Obras políticas — 1ª fase — 1931/1937. Brasília: UnB, t. III, 1983, p. 106). João Mangabeira não hesitou em etiquetá-lo como o construtor do regime republicano, o que é uma meia-verdade (Rui, o estadista da República. São Paulo: Livraria Martins, 1960). Mesmo quem lhe apontou os erros, como José Pedro Galvão de Sousa e Gilberto Freyre — que viam, com razão, no grande tribuno a personificação do desconhecimento das nossas estruturas sociais —, e Afonso Arinos de Melo Franco — que, embora muito próximo doutrinalmente de Rui, ressaltava-lhe, todavia, uma “incapacidade para a liderança política” (Rodrigues Alves — apogeu e declínio do presidencialismo. 2ª ed., Brasília: Senado Federal, t. I, 2001, p. 229) —, não era indiferente ao seu apostolado cívico.
A excelência de tal fortuna crítica ainda encontra os seus continuadores. O embaixador e professor Carlos Henrique Cardim publicou, em 2007, livro seguramente renovador dos estudos “ruístas” — A raiz das coisas — Rui Barbosa: o Brasil no mundo —, agora reeditado, em versão amplamente revista e atualizada, sob a chancela da Civilização Brasileira. Tendo servido como embaixador do Brasil na Noruega e na Islândia, notabilizou-se igualmente como professor do Instituto Rio Branco e da Universidade de Brasília e como presidente do Conselho Editorial da referida universidade, pela qual fez publicar numerosíssimos títulos dentre os mais importantes nos campos da política, da história e da filosofia. Fortemente influenciado pelo pensamento de Norberto Bobbio, recebeu-o na UnB e publicou várias de suas obras. A primeira edição brasileira de obra de Eric Voegelin, saída em 1982 — The New Science of Politics —, com prefácio de José Pedro Galvão de Sousa, é outro feito que devemos ao tirocínio do embaixador Cardim. É um dos mais destacados membros do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro.
Enquadrar a personalidade de um homem de pensamento ou de ação no âmbito da história de seu país compete aos estudos de síntese, para o que muito concorrem as pesquisas mais especializadas. Ainda são razoavelmente conhecidas as facetas de advogado, publicista e orador de Rui Barbosa, para além de sua condição de frondoso estilista da língua portuguesa. Mas e quanto à sua dimensão de diplomata? Eis aqui o tema central da monografia do embaixador Cardim.
Ainda hoje é o Barão do Rio Branco a referência indiscutível do Itamaraty e de todos quantos se dediquem à carreira diplomática, e nem o poderia ser diferente. Chanceler por exatos dez anos, de 1902 a 1912, servindo a quatro presidentes, Rio Branco, que jamais escondeu as suas preferências monárquicas, foi, até certo ponto, um dos responsáveis pela consolidação da república, pelo papel importantíssimo que desempenhou no estabelecimento das fronteiras do Brasil com alguns países vizinhos.
Foi, todavia, Rui Barbosa que desfrutou de reconhecimento mundial como diplomata. Em junho de 1907, Rio Branco o convida para chefiar a delegação brasileira à II Conferência da Haia, na Holanda. Convocada pelo czar da Rússia, Nicolau II, o grande evento diplomático se destinava a implementar medidas a nível global que pudessem assegurar a paz internacional. Os delegados dos diversos países discutiram a criação de uma corte de justiça internacional permanente, da qual participariam somente as grandes potências econômicas e militares. Aqui surgiu a “Águia de Haia”. Com o amplo domínio que possuía das línguas francesa e alemã, e dotado de uma eloquência prodigiosa, Rui sustentou, à luz de um correto entendimento da realpolitik, que a eventual criação de uma tal corte de justiça só estimularia uma corrida armamentista sem precedentes, uma vez que as nações não integrantes da corte logo ambicionariam um lugar dentre as potências. Quanto ao mais — defendeu Rui —, em face da ordem jurídica internacional, todas as nações são igualmente soberanas e livres. Eis aí a famosa tese da igualdade jurídica das nações. Desnecessário dizer que a atuação do delegado brasileiro teve o sabor de uma consagração quase absoluta — não o suficiente, porém, para impedir a Primeira Guerra Mundial (1914-1918).
Há quem diga que cabe a Rui o status de “pai intelectual” da diplomacia brasileira moderna. É a opinião de outro notável diplomata e professor universitário brasileiro, Paulo Roberto de Ameida — “ele deixou um legado de posições, hoje devidamente constitucionalizadas nos primeiros artigos da Carta de 1988. (...) Sua obra de ativo ‘internacionalista’ está dispersa em centenas de artigos, pareceres, discursos, orações e preleções jurídicas (...). Sua mais importante ação diplomática está contida em telegramas, na condição de chefe da delegação à segunda conferência internacional sobre a paz mundial, realizada na Haia em 1907.” (Revista Desafios do Desenvolvimento. Brasília: IPEA, ano 5, n. 39, janeiro 2008, p. 62). A tese, pois, nada tem de absurda. De mais a mais, seria até um disparate conceber que um estadista consumado como Rui Barbosa, que ambicionou tão ardorosamente a Presidência da República — e títulos e méritos não lhe faltavam —, não fosse um grande conhecedor dos meandros da política externa.
A raiz das coisas — Rui Barbosa: o Brasil no mundo dá seguimento com dignidade à fortuna crítica “ruísta”. Não padece do pedantismo típico das investigações demasiado segmentadas. É obra que merece ser lida por todos, desde o chamado “público universitário” até os que buscam o conhecimento “inútil” do saber que verdadeiramente educa, instrui e civiliza; aliás, principalmente por estes. O embaixador Cardim, reeditando a sua opus magnum, presta uma bela homenagem a um brasileiro no qual até mesmo a “glória”, esse “conjunto de mal-entendidos”, não apaga a importância.
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