(Divulgação)

COLUNA

Sônia Amaral
Sônia Amaral é desembargadora do Tribunal de Justiça do Maranhão.
Sônia Amaral

Liberdade

Alguns poderão dizer que, como se trata de música de criança, tem a profundidade de um pires com água. Eu, ao contrário, achei de muita profundidade, porque consegue mostrar, a partir de versos simples, a importância que devemos conferir à liberdade.

Sônia Amaral

Atualizada em 02/05/2023 às 23h50

“A canoa virou

Por deixá-la virar

Foi por causa da Liberdade

Que eu não soube remar

Se eu fosse um peixinho 

E soubesse nadar

Eu tirava a Liberdade

Do fundo do mar”.

A estrofe acima foi extraída de uma música de criança, essas de fazer roda (se é que a criançada ainda faz roda!?), e que escutei por acaso. 

Alguns poderão dizer que, como se trata de música de criança, tem a profundidade de um pires com água. Eu, ao contrário, achei de muita profundidade, porque consegue mostrar, a partir de versos simples, a importância que devemos conferir à liberdade. 

Veja, de forma metafórica, a letra nos fala que a liberdade adquirida foi perdida (A canoa virou), porque aquele que a possuía não tinha a capacidade exigida para protegê-la e colocou tudo a perder, diante da grandiosidade da missão (Foi por causa da liberdade que eu não soube remar). Em seguida, tentando retomar a liberdade perdida, ele almeja ter capacidades ainda maiores (se eu fosse um peixinho) para resgatá-la (Eu tirava a Liberdade. Do fundo do mar).

Sinceramente, na atualidade, diante de certas propostas legislativas, eu temo que, por falta de habilidades necessárias para agir mais adequadamente à preservação da liberdade, matemo-la. 

Gustavo Maultasch, diplomata e escritor, escreveu um livro sobre o tema – “Contra toda censura” – que, para mim, consegue expressar com precisão os riscos à preservação da liberdade nos tempos atuais. Cito um trecho do diagnóstico que ele apresenta logo nas primeiras páginas do livro: “Escrevi este livro com dois objetivos em mente: O primeiro, ligar o alerta de que vivemos uma época de grande reversão, em que o antigo consenso pós-redemocratização em prol das liberdades fundamentais, em especial da Liberdade de Expressão, encontra-se enfraquecido e sob forte ameaça. É crescente o número de pessoas que têm abandonado o princípio fundamental da Liberdade de Expressão para aderir à crença no debate público tutelado, na ideia de que um debate público saudável é aquele em que uma classe superior detém poder para determinar, em nome do “bem”, aquilo que pode ou não pode ser dito.

E arremata que o segundo objetivo do livro é promover a defesa da liberdade de expressão, ou seja, virar peixinho e resgatá-la com vida do naufrágio. 

Falando em “classe superior”, lembrei-me de Thomas Sowell, economista, professor americano renomado, com inúmeros livros e que em duas obras – “Os Intelectuais e a Sociedade” e “Os Ungidos” – separa os indivíduos em dois grandes grupos: trágicos e ungidos. Os primeiros seriam aqueles que enxergam o homem com os seus pecados e que, portanto, concluem que nunca haverá uma sociedade perfeita, sem desigualdade, apostando, assim, em uma sociedade possível, com aceitação das imperfeições naturais. Os segundos seriam aqueles que idealizam um mundo perfeito e por vir, e com essa missão em mente têm um plano de mundo imune a problemas, cheio de ideias e fórmulas completas e acabadas de felicidade para todos, razão pela qual lutam por implementá-las, nem que seja à revelia de uma parte considerável da sociedade.

É justamente essa casta de ungidos que, penso, acha que hoje a liberdade pode ser flexibilizada, principalmente em face das redes sociais que, ninguém de bom senso, desconhece que ali, muitas vezes, há excessos de todas as ordens. “Há muitas ideias vis, cruéis, imorais, ofensivas ou simplesmente erradas no debate público …” (Gustavo Maultasch). 

Contudo, comungando do mesmo entendimento do Maultasch, penso que ideias desse tipo devem ser combatidas com outras ideias, melhores, e nunca com censura, silenciamento, perseguição. O livre pensar, como o direito à vida, é, para mim, direito fundamental que integra o topo da pirâmide, pela relevância que representa na vida dos indivíduos. 

Em um caso clássico julgado pela Suprema Corte americana, “O Povo contra Larry Flynt” (1998), o acusado, valendo-se da Primeira Emenda à Constituição americana, resumiu com apuro a forma correta de universalização da liberdade de expressão, sem aceitar quem pode ou não falar: se esta emenda “protegerá um canalha como eu, então ela protegerá todos vocês. Porque eu sou o pior.” 

A liberdade de expressão é direito de todos, até dos canalhas, e se não encararmos assim, em momento seguinte, se estivermos em minoria, nós poderemos ser vítimas da censura. Nunca devemos tratar um direito fundamental de maneira circunstancial e casuística, pois a liberdade de expressão existe precisamente para proteger aqueles que discordam da gente e do governante de plantão. Quem concorda com aquele governante que, em certa medida, tem o poder de cercear o discurso, não precisa de proteção. 


 

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