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COLUNA
Kécio Rabelo
Kécio Rabelo é advogado e presidente da Fundação da Memória Republicana Brasileira.
Kécio Rabelo

Paixão sobre a mesa

Páscoa é travessia e toda travessia tem seus encantos e perigos. No deserto, todo encontro é precioso, providente e divino.

Kécio Rabelo

Outro dia, alguém contou de uma família que havia comprado um apartamento novo. Era um casal e dois filhos adolescentes. Por uma decisão dos quatro, na adequação do novo imóvel, decidiram suprimir a sala de jantar, dando lugar ao escritório do pai e a alguns equipamentos de academia. Tinham uma razão óbvia, não almoçavam em casa, nem se encontravam no jantar, também não recebiam amigos, não tinha espaço para mesa, nem tempo para esses encontros. Aquela família tinha seu ritmo. Não sei se deu certo e, em qual ambiente conversaram sobre a reforma. Mas a mesa foi embora.

Vivemos tempos de travessia, de passagem e de mudanças. E, outra vez, estamos a celebrar a Páscoa, oportunidade de recordar os acontecimentos que marcaram aqueles dias, mergulhar no cenário, nas percepções, no modo de vida e na consciência coletiva do povo daquela época. A cronologia da Páscoa de Jesus pode nos inspirar uma pedagogia de vida. Sua vida toda, marcada pela mensagem da cruz, constitui-se num itinerário de crescimento e resignação diante da dor, da solidão e dos dramas do sofrimento humano. O abandono da cruz é antecedido de um ágape fraterno, celebrado com aqueles e aquelas com os quais partilhou a vida e a missão. É ali, ao redor da mesa, que anuncia sua paixão e faz permanente sua presença, numa mensagem de exaltação à humildade que perpetua sua memória, num “sacramento de saudade”. 

A mesa tem sua mística. É o lugar da acolhida, da vivência fraterna, do diálogo, dos bons embates, lugar da verdade, prenúncio do Reino. Algo de especial tinha aquela ceia, uma atmosfera de despedida e saudade que se mistura à incerteza, à insegurança e à solidão do dia seguinte. Na mesa do pão partido, sobra gratuidade, ternura e compaixão. Há também mesas fartas, onde não falta nada, senão o próprio sentido de estar à mesa. A cumplicidade experimentada, vivenciada e celebrada ao redor da mesa, antecipa, acompanha e encarna a hora da cruz, transformando-a em livre e decidida oblação, porque só o amor é capaz de dar sentido à dor.

Voltemos às nossas mesas. O tempo corrido, a praticidade, a dinâmica do dia a dia, a necessidade de produzir, tem feito sobrar cadeiras, deixado mesas vazias e lares sem mesas. Falta tempo para relacionar-se, para ouvir e olhar o outro. Comunicamo-nos mais com os dedos do que com os gestos. O coração humano tem sede de ser visto, acolhido e tocado. Nunca estivemos tão conectados e paradoxalmente tão dispersos e isolados. Há uma solidão pessoal, familiar e social, que têm levado centenas de pessoas a atos extremos de renegação da própria vida.

Páscoa é travessia e toda travessia tem seus encantos e perigos. No deserto, todo encontro é precioso, providente e divino. Cada encontro torna-se uma oportunidade, um oásis de vida e esperança, porque, sim, é no encontro com o outro que descobrimos que estamos vivos e em movimento. É no caminho para o calvário que nos deparamos com o bem que fizemos ou que deixamos de fazer. É a oportunidade de ressignificar a dor, de acertar o passo e deixar-se tocar, enxugar e socorrer. Na cruz, até a solidão é companhia, por isso, paixão.

Quem sabe, estes dias intensos, carregados de simbolismo, nos ajudem a construir o dia da grande mesa, onde quem a prepara pode tomar assento, onde não haja quem sirva e quem é servido, onde a vida é partilhada, defendida, experimentada e celebrada,  onde a fome de pão seja lembrança distante e superada, onde haja, tão somente, fome e sede de justiça e de paz. É a utopia versejada por Wellington Reis, a embalar a Natalina da Paixão do poeta Godão: “é tempo de florejar, vida nova, nova vida, ressureição”.

Creio nesse dia, tecido no percurso da história, de que outra vez, como naquela ceia derradeira, haverá, pois, paixão sobre a mesa!

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