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COLUNA

Kécio Rabelo
Kécio Rabelo é advogado e presidente da Fundação da Memória Republicana Brasileira.
Kécio Rabelo

Sexta de encontros

É rica a nossa tradição popular, carregada de símbolos e ritos que, apesar da instantaneidade dos nossos dias, parecem nos indicar uma alternativa no meio do caminho, ou ao menos, nos propor alguma reflexão sobre o conviver e o compartilhar.

Kécio Rabelo

Atualizada em 06/04/2023 às 11h39

A vida humana é encontro em si mesma. Ninguém vive para si, nem mesmo o mais convicto dos egoístas. Encontrar a si mesmo e deixar-se encontrar é uma necessidade vital, movimento natural da condição humana e expressão máxima de humanidade. O isolamento para os humanos é tão terrível que, desde muito cedo, no início das primeiras civilizações, fora inventada e implementada a reclusão, a privação de liberdade como pena para praticamente todos os delitos. Recentemente, todos nós, experimentamos a dor do isolamento forçado, a impossibilidade de nos encontrar, de nos reunir e abraçar. Ainda sentimos todos, as consequências desse acontecimento marcante da história recente em que todos passamos, na ausência e no terreno das impossibilidades, a valorizar a presença e o encontro.

É rica a nossa tradição popular, carregada de símbolos e ritos que, apesar da instantaneidade dos nossos dias, parecem nos indicar uma alternativa no meio do caminho, ou ao menos, nos propor alguma reflexão sobre o conviver e o compartilhar. 

Há mais de 200 anos, realiza-se no Centro Histórico de São Luís, no período da Quaresma, a Procissão do Encontro. Um cortejo, quase fúnebre, realizado pela centenária irmandade de Bom Jesus dos Navegantes, que sai da Igreja de Santo Antônio, desce a rua da Paz, levando a imagem do Bom Jesus, carregando sua cruz. Ao mesmo tempo, sai da Catedral da Sé outro cortejo, levando a imagem de Nossa Senhora das Dores. O cenário é como de um auto, uma cena que ganha vida percorrendo a cidade tomada pela Quaresma. Emoldurados pelas fachadas coloniais que circundam o Largo do Carmo, vão se aproximando aos poucos os dois andores e com eles, os olhares atentos dos presentes, que, em silêncio, contemplam a mística daquele encontro. O momento em que Maria, encontra seu filho no caminho do calvário. E em que Jesus, encontra sua mãe, transpassada pela espada de dor, profetizada pelo velho Simeão.

É o rito da sexta-feira, a última da Quaresma.

Dizia Vinicius de Moraes que “a vida é a arte do encontro, embora haja na vida, tantos desencontros”. E na vida, esta cena pode nos inspirar e motivar reflexões. Não é raro que no caminho da vida encontremos sofredores a carregar suas cruzes físicas ou de alma; também não é raro evitá-los. O encontro de Maria com Jesus é também o encontro da humanidade com sua condição mais vil. É o encontro nosso de cada dia como nossas feridas e sofrimentos, com a face controversa dos nossos seres, com o peso de nossas escolhas, com o fardo da nossa indiferença, e ao mesmo tempo, é o encontro com o que de mais humano têm todos os humanos – a capacidade de amar. Autoproclamada, tanto quanto contida em nossa essência como promessa de vir a ser.

Se é verdade que estamos vivendo o tempo da “sociedade liquida”, como nos propõe Zygmunt Baumann, onde o indivíduo é que molda a sociedade à sua personalidade, estabelecendo constante movimento a partir de processos mais céleres e dinâmicos, também é verdade que a velocidade das mudanças desta época nos forçaram a um individualismo venal, nos colocando frente a frente com esse lado abstruso do ser, centrando-nos como absolutos, distantes da condição verdadeiramente humana. A quem interessa estas mudanças? Para onde caminhamos com tanta pressa? E onde nos leva essa condição que sublinha o individual em detrimento do humano que em nós habita? A primeira vítima desse processo cruel emerge na convivência e na consciência social. Ferem-se de morte a esperança e a crença no potencial humano de transformação e, ao matar o sonho, dizima-se também o sonhador. São as curvas da história, os desencontros do caminho e as escolhas dos homens, nem sempre os de boa vontade. Voltemos, pois, ao Largo do Carmo.

Após o sermão, - proferido do mesmo púlpito utilizado pelo Padre Vieira, na Capela dos Navegantes, onde em 1654 emergia como lição de vida o famoso Sermão aos Peixes – as procissões se juntam, formando uma só romaria. Mãe e Filho caminham juntos, lado a lado, espreitando-se pelas ruas estreitas do centro, por entre cânticos e orações, eternizando a beleza daquele encontro, sofrido, mas cheio de significados. Fico sempre a pensar no que diriam um para o outro do alto de seus andores ao ver o caminho de hoje tão idêntico à via crucis de ontem em marcas de dor, em sinais de sofrimento...

Segue o cortejo do encontro, que é também a procissão da esperança, no entardecer do tempo. Descendo à Beira-Mar, vou indo lembrando Quintana: “A vida é o dever que nós trouxemos para fazer em casa. Quando se vê, já são seis horas. Quando se vê, já é sexta-feira.

Que a sexta-feira do encontro nos inspire para o bem e para a essência humana que em nós persiste como anseio, para que a hora do entardecer, no lusco fusco do viver, a hora seja de encontro esperançoso e de celebração reverente – ao Criador, à Mãe de todos, ao homem, a mulher, aos viventes, e à capacidade – às vezes adormecida, mas infinita – de amar e professar amor para além da dor!

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