(Divulgação)

COLUNA

Gabriela Lages Veloso
Escritora, poeta, crítica literária e mestranda em Letras pela Universidade Federal do Maranhão (UFMA).
Gabriela Lages Veloso

Uma parte de mim

Na vertigem do dia (1980), de Ferreira Gullar, apresenta o atropelo dos acontecimentos, do ritmo metropolitano, da memória e dos valores em conflito dentro do indivíduo.

Gabriela Lages Veloso

Atualizada em 29/02/2024 às 15h57
Ilustração: Bruna Lages Veloso
Ilustração: Bruna Lages Veloso

Ferreira Gullar é o pseudônimo de José Ribamar Ferreira. Nascido em São Luís, capital do estado do Maranhão, em 10 de setembro de 1930, mudou-se para o Rio de Janeiro aos 21 anos. Em seu novo lar, passou a ser colaborador de jornais e revistas, inclusive como crítico de arte. Considerado um dos poetas mais importantes do Brasil, Gullar publicou seu primeiro livro, Um pouco acima do chão, aos 19 anos de idade. Dentre suas principais obras, encontram-se A luta corporal (1954), Dentro da noite veloz (1975), Poema sujo (1976) e Na vertigem do dia (1980). Além disso, foi o autor de ensaios, crônicas e peças teatrais.

Participou do Movimento Concretista, na década de 1950, e foi um dos idealizadores do Neoconcretismo. Sua poesia é marcada pelo engajamento político. Filiado ao Partido Comunista Brasileiro (PCB) em 1964, foi perseguido pela ditadura militar brasileira, o que levou o poeta a exilar-se na França, União Soviética, Chile, Peru e Argentina. Em 2005, o poeta maranhense ganhou dois importantes prêmios pelo conjunto de sua obra: o da Fundação Conrado Wessel de Cultura, na categoria Literatura, e o Machado de Assis, a maior honraria da Academia Brasileira de Letras. Em 2007, foi vencedor do Prêmio Jabuti com o livro Resmungos, que foi editado pela Imprensa Oficial do Estado de São Paulo.

Em 2010, recebeu o prêmio Camões, considerado a mais alta distinção concedida a um autor de língua portuguesa. E, aos 84 anos, Ferreira Gullar foi eleito como o sétimo ocupante da cadeira de nº 37, da Academia Brasileira de Letras, sendo eleito em 9 de outubro de 2014. Faleceu em 2016, aos 86 anos. Mas sua obra continua reverberando até aos nossos dias e cativando novos leitores.

Na vertigem do dia, de Ferreira Gullar, foi publicado pela primeira vez em 1980 e reeditado pela Companhia das Letras em 2017. Essa nova edição traz um prefácio de Alcides Villaça e conta com 26 poemas, que serão brevemente analisados, ao longo deste ensaio. Segundo o poeta maranhense, a poesia nasce do espanto, por isso, como o próprio título sinaliza, Na vertigem do dia apresenta o atordoamento/atropelo dos acontecimentos, do ritmo metropolitano, da memória e dos valores em conflito dentro do indivíduo. É um livro que trata a poesia como o encontro entre a revolução e o lirismo. Vejamos as principais temáticas dessa obra poética.

“Meu espaço é o dia/ [...] medido mais pelo meu pulso/ do que/ pelo meu relógio de pulso” (Gullar, 2017, p. 29). Esses versos do primeiro poema do livro Na vertigem do dia, intitulado Minha medida, abordam a vida de um sujeito que sente os seus dias sendo medidos pelo seu batimento cardíaco (representação das emoções) e não pelo tempo medido pelos relógios (tempo cronológico, que não passa de uma convenção). Além disso, esse indivíduo compreende que o seu território/vida se encontra no dia, na luz do dia, que pode ser interpretada como a realidade tal como ela é, por mais dura que seja. A seguir, reproduzimos Traduzir-se (p. 30-31), o segundo poema do livro:

 

Traduzir-se

Uma parte de mim

é todo mundo;

outra parte é ninguém:

fundo sem fundo.

 

Uma parte de mim

é multidão;

outra parte estranheza

e solidão.

 

Uma parte de mim

pesa, pondera;

outra parte

delira.

 

Uma parte de mim

almoça e janta;

outra parte

se espanta.

 

Uma parte de mim

é permanente;

outra parte

se sabe de repente.

 

Uma parte de mim

é só vertigem;

outra parte

linguagem.

 

Traduzir uma parte

na outra parte

- que é uma questão

de vida ou morte -

será arte?

 

Esse é, sem dúvida, um dos textos poéticos mais conhecidos do autor. É importante ressaltar que as primeiras seis estrofes iniciam da mesma maneira (“Uma parte de mim”), mas têm complementos diferentes. A última estrofe tenta traduzir e unir todas essas partes contratantes. Esse poema visa responder a emblemática pergunta: quem sou eu? Somos “todo mundo” e “ninguém”, “multidão” e “solidão”, ponderação e delírio, seres que vivem tudo de uma vez mas que, ao mesmo tempo, se espantam facilmente. Somos permanentes e diferentes, “vertigem” e “linguagem”, um universo em expansão, um mistério até para nós mesmos. “Traduzir uma parte/na outra parte” é a missão do artista, que deve unir tudo que parece ser paradoxal e incompatível em uma unidade/obra, e essa é “uma questão/ de vida ou morte”.

Os poemas Arte poética, Subversiva e Poema obsceno são metalinguísticos, ou seja, se debruçam sobre o fazer poético. Enquanto no primeiro, o eu-lírico afirma: “Não quero morrer não quero/ apodrecer no poema” (Gullar, 2017, p. 32), para indicar que a poesia deve ser viva e sempre se renovar nas mãos dos leitores, graças às suas vivências e outras leituras. No segundo, o eu-poético explica que a “poesia/ quando chega/ não respeita nada” (p. 33), isto é, não fica presa a tabus, não tem filtro ou censura, não tem preconceitos e ainda “promete incendiar o país”, fazer justiça, trazer felicidade e revolução. E, por fim, o Poema obsceno é carregado de críticas sociais severas contra a miséria e a injustiça, por isso, o eu-lírico acredita que “o poema/ terá o destino dos que habitam o lado escuro do país/ - e espreitam” (p. 35), ou melhor, será rechaçado, mas permanecerá em alerta.

Outros poemas que também abordam o fazer poético são O poço dos Medeiros e A voz do poeta. Enquanto no primeiro poema, o eu-lírico diz que a vida é a matéria-prima de sua poesia, não a beleza ou a sublimação, mas a realidade sem artifícios. No segundo, o eu-poético explica que a voz do poeta é a de uma pessoa que experiencia diversas situações, por isso, os poemas seriam “fogo logro solidão” (Gullar, 2017, p. 71). O fogo representa a resistência, o ardor e a luta, o logro simboliza a vitória, a alegria e o êxito, já a solidão é marcada pelo silêncio, a saudade e o enclausuramento (físico ou metafísico). Ou seja, a poesia é vida, a vida real, com seus bons e maus momentos.

O poema Espera traz um prenúncio: “um grave acontecimento está sendo esperado por todos” (Gullar, 2017, p. 36). Em outras palavras, algo inominado está tirando a paz dos poderosos e ricos. Seria uma revolução das classes subalternas, em busca por igualdade e equidade?! Por sua vez, o poema Bananas podres aborda a efemeridade da vida (não somente a humana), mas também a validade das coisas, em detrimento do tempo infinito do universo, como podemos notar nos versos: “e agora/ ali: bananas negras/ [...] e gira ponteiro no universo dourado/ (parte mínima da tarde)/ em abril/ enquanto vivemos” (p. 37). O tempo de validade/vida se comparado ao universo é apenas uma “parte mínima da tarde”. E tudo isso (os dias, as perdas, o apodrecimento) continua acontecendo “enquanto vivemos”, faz parte de nós e de nossas curtas existências.

Além disso, três poemas do poeta maranhense elegem a efígie do espelho como mote de seus versos, são eles: O espelho do guarda-roupa, ÓVNI e Ao rés do chão. Se por um lado, o primeiro poema aborda várias simbologias do espelho, tais como o silêncio, a luz (mas essa provém do espelho, e não o contrário, por isso, é diferente, única), a dor que advém da verdade, o abismo e a instantaneidade (o espelho não retém as coisas, apenas as reflete no mesmo momento, fugazmente. Ele reflete tudo, até mesmo o que ocorre quando estamos em outros ambientes). Por outro, o segundo poema apresenta um título inusitado, por que ÓVNI? O espelho é um objeto voador não identificado? Ele também se move (além do plano físico) ou apenas captura o movimento de modo efêmero? “Se me afasto um passo/ o espelho me esquece/ [...] Eu guardo o espelho/ o espelho não me guarda”, e mais: “O espelho me reflete/ Eu (meus/ olhos)/ reflito o espelho” (Gullar, 2017, p. 57). Então, também não somos espelhos?! Finalmente, o terceiro poema aborda a imobilidade dos objetos, perante o espelho, e os silêncios contidos nesse vidro refletor.

Vale a pena ressaltar que a cidade é outro tema bastante caro à Ferreira Gullar. Na vertigem do dia ele se faz presente principalmente nos poemas Cantiga do acaso, Bicho urbano e Improviso ordinário sobre a Cidade Maravilhosa. Enquanto o primeiro poema aborda a cidade e seus reflexos sobre os muitos “eus”, que cada ser humano carrega dentro de si, ao apresentar o exato momento em que a rotina saí do automatismo e vira poesia. Por sua vez, no segundo poema, o eu-lírico fala sobre o seu fascínio pela multidão frenética das cidades. O terceiro poema se difere dos anteriores por citar uma cidade em específico: Rio de Janeiro. O eu-lírico inicia relembrando o passado, em um tempo remoto, na época da colonização. Assim, ele lembra das injustiças, da sujeira, das doenças, da fome, da pobreza e do preconceito. Por isso, ele muda o epíteto do Rio para “cidade maliciosa” e diz que, por conta do passado desajustado, hoje é “endurecida”, “poluída”, somente um amontoado de asfalto e de “gente que não planta/ e que come o que compra/ e pra comprar se vende” (Gullar, 2017, p. 87).

Tanto A ventania, quanto Primeiros anos são poemas que abordam a questão da infância. Se por um lado, no primeiro há uma visão infantil que eterniza as coisas mais simples do cotidiano. Por outro, no segundo texto poético, o eu-lírico recorda a sua infância e juventude conturbadas, repletas de dificuldades. Um sorriso e Improviso para uma moça do circo, por sua vez, apresentam a paixão e os desejos do eu-poético, que simboliza o ser humano, de modo geral. Em Mau cheiro e Bananas podres 2, somos apresentados à imundície/podridão da corrupção, da guerra, da poluição, e da maldade humana. No poema Homem sentado, o eu-lírico, recostado em um divã, sente-se como “plantas verdes/ que já morreram”, isto é, morto em vida, enfrentando a solidão do exílio.

Esse mesmo sentimento de tristeza profunda se encontra nos poemas A alegria e Digo sim, que abordam, respectivamente, como o sofrimento nos iguala aos animais abandonados ou feridos, ao criticar aqueles que, ao tentar confortar os que sofrem, mandam que eles simplesmente se conformem com suas dores; e a contrariedade humana que faz com que as pessoas, apesar da violência, da fome e da solidão, aceitem tudo, digam sim, se acostumem.

Por fim, é válido salientar que Ferreira Gullar fez duas belas homenagens em seu livro, através dos poemas: Morte de Clarice Lispector e Lições de arquitetura (dedicado a Oscar Niemeyer). Enquanto o primeiro poema honra a memória da grande escritora brasileira, e compara o seu olhar a um clarão (jogo de palavras com o nome Clarice), a fim de dizer que, apesar da morte, a autora continuava iluminando o mundo com a sua literatura. O segundo texto poético presta uma rica homenagem ao arquiteto Niemeyer, ao afirmar que “com seu traço futuro/ Oscar nos ensina que o sonho é popular/ [...] Nos ensina a sonhar/ mesmo se lidamos/ com matéria dura:/ o ferro o cimento a fome” (Gullar, 2017, p. 67).

Assim, Ferreira Gullar criou em seu livro Na vertigem do dia, um caleidoscópio da experiência urbana, ao abordar as diferentes nuances da vida dos indivíduos que habitam os centros urbanos: suas dores, fomes, desejos, alegrias e sua arte, que segundo o poeta, “promete incendiar o país”. Esses versos prometem, e incitam, a revolução, a melhoria do nosso país, e do mundo, a queda dos regimes ditatoriais e o fim das guerras e da fome. Como negar a atualidade desse livro? 

 

REFERÊNCIA:

GULLAR, Ferreira. Na vertigem do dia [1980]. 1ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2017. 

O livro pode ser adquirido no site da Disal Distribuidora de Livros: 

https://www.disal.com.br/produto/5341159-Vertigem-Do-Dia-Na-Companhia-DasLet 

 

 

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