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COLUNA

Prof Michael Amorim
Michael Amorim é professor de filosofia, conferencista, podcaster pai e marido.
Prof Michael Amorim

Que é que você quer com a literatura? (parte IV)

Quarto de uma série de textos que busca mostrar que as personagens da literatura expressam mais que um mero devaneio: são modelos de vidas possíveis.

Prof Michael Amorim

As boas obras nos ensinam a separar o possível do impossível, o verossímil do absurdo, o banal do excepcional; preparam-nos para o mundo, põe-nos em contato com a maldade, frieza, inteligência, sutileza, sacrifício e amor humanos. Nos fazem aprender a viver, a ser, de fato, parte da humanidade. Por isso a ‘suspensão da descrença’. Um clássico é mais que entretenimento, é uma vida possível; é algo que você poderia ter feito, mas não fez.

Por isso é imprescindível que, na leitura, se viva na pele do personagem, mesmo os maus. É fato, até maus exemplos nos ensinam. Se um clássico vai além do entretenimento, também é mais que uma proposta moral. Assim sendo, uma leitura eivada de moralismo pode atrapalhar bastante a compreensão e, principalmente, a absorção da obra, que deve estar livre desse tipo de julgamento. O que interessa, nas obras de literatura, não é fazer julgamento das escolhas morais ou imorais dos personagens, mas aguçar, com elas, nossa percepção moral: expandir nosso imaginário e, assim, melhor julgar a nossa própria vida e ponderar nossas próprias escolhas.

A literatura, sobretudo a poesia, deve ser tomada como expressão momentânea e possível de sentimentos e atitudes, não como propostas dogmáticas de moral e conduta. Lê-las assim é não saber ler. É confundir Hamlet com um código de filosofia moral. A função do discurso poético não é propor nada e sim abrir a imaginação para o reino do possível. Charles Plisnier escreveu, em seu Papiers D’un romancier, que:

“A missão do romancista não é só contar uma história, nem pintar costumes ou analisar caracteres, e sim revelar o interior do ser humano, ou seja: a lama e a santidade que existem no íntimo do homem; dar-lhe a consciência do sofrimento fraterno; interrogá-lo sobre os problemas da própria alma e inquiri-lo sobre si mesmo. Por esse caminho, ainda que o romancista seja imoral, ou pouco edificante, serve eles aos homens e a Deus”. 

Obras da literatura não existem para serem condenadas ou absolvidas, pois, nos dois casos, há julgamento. Existem para serem absorvidas, integradas à personalidade. Devemos ir aos clássicos da literatura para maturar nossas posições, vencer nossos preconceitos, reconhecer o mal, amar o bem; para saber expor melhor nossos sentimentos, ver a complexidade da vida e, sobretudo, nos tornar humanos completos. O texto de Charles Plisnier citado algumas linhas acima figura, não por acaso, na folha de rosto do livro A Mulher Proibida, de Josué Montello, livro que narra a história do conflito interno de um pai de família viúvo que sente-se atraído sexualmente por uma adolescente. A crise moral se agrava ainda mais ao sabermos tratar-se de sua filha adotiva – a verdadeira nasceu morta e foi substituída sem o conhecimento da mãe. Não trata-se de um dos melhores trabalhos do grande escritor maranhense, mas serve bem para mostrar que a condição humana é inexoravelmente tensão entre trevas e luz. Tensão já exposta nas Escrituras pelo Apóstolo Paulo ao escrever aos Romanos que “Não faço o bem que queria, mas o mal que não quero”.

Sem essa intrínseca contradição o homem é tudo, menos homem. Torna-se semelhante ao Dr. Jekyll, personagem de O Médico e o Monstro, que renega sua parte má. Na novela de Robert Louis Stevenson, o maligno Hyde nasce do desejo deturpado de Jekyll de separar o bem e o mal no ser humano, de extirpar em si tudo o que o leva a cometer maldades, de buscar uma existência terrena sem crises morais. Creio ser a estes que Nietzsche chama de Niilistas, homens que, em nome do céu, negam a terra; e acabam perdendo os dois. Esse “puritanismo intelectual”, que nega a condição humana, é uma praga que precisa ser erradicada. A quem vê a si próprio como sendo uma alma pura distante do “mal” falta humanidade e, por isso mesmo, caridade, pois a caridade só pode ser exercida para com o semelhante. Achar-se diferente e não semelhante é a sepultura da caridade. Ao cultivar a alma, não se deve esquecer que também tem-se corpo. “De tanto ser uma alma, acaba-se por deixar de ser um homem, diria Victor Hugo”. Não somos anjos, seres puramente intelectuais, e podemos, por isso mesmo, na complexidade do mundo, maturar nossas opiniões. Pretender isolar uma alma da espécie humana é torná-la individualista, seca e insuportavelmente metida a besta. Estão no mundo, mas não são do mundo, disse Nosso Senhor a seus discípulos. E esse estar no mundo é crucial.

 

Conflitos morais existem na literatura por existirem, antes, na alma humana. Volto a lembrar do que disse o escritor cubano Guillermo Cabrera Infante em sua História do Conto, “o conto é tão antigo quanto o homem”. Ele continua:

“Antes até que aquele anônimo artista de Altamira pintasse seus minuciosos murais, deve ter existido um autor anônimo na região que contasse contos para seus companheiros de caverna sentados em volta de uma fogueira. O homem, como sabemos, é o único animal que faz fogo. O contista é o único ser humano que faz contos. Esses contos seriam, por exemplo, narrações de um dia de caça perdido no encalço de um cervo branco com um chifre na testa. Os contos não perduraram nas paredes da caverna, mas não se perderam: foram reencontrados, contados, na memória coletiva”.

Um clássico tem a dupla missão de nos fazer conhecer melhor o mundo e a nós mesmos. Era José Monir Nasser quem dizia que nós não explicamos os clássicos; eles é que nos explicam. 

Sentar em volta da fogueira para ouvir sobre o mundo e suas aventuras – ou desventuras –, sair da prisão de nossos pensamentos, creio ser o principal convite que nos faz a literatura. Afinal, nascemos em duplas trevas: pecado e ignorância, a salvação para ambos vem de fora: da graça redentora do batismo e da leitura atenciosa dos clássicos. Leitura que ilumina como as chamas da fogueira que arde aquecendo aqueles que ouvem atenciosos as palavras do ancião. Palavras que trazem símbolos que refletem, ali mesmo, a humanidade. Ligando os ouvintes, antes isolados pelo tempo e pelo espaço, ao restante da raça humana de todos os tempos e lugares. 

Pensei em terminar este ensaio comentando um trecho do texto “Poesia e Filosofia”, capítulo que saiu nos estudos reunidos “A Dialética Simbólica” (Vide Editorial, 2° edição, 2015), livro do filósofo Olavo de Carvalho, mas, dada a beleza e lucidez do parágrafo, seria um crime não adicioná-lo aqui na íntegra. Faço e despeço-me:

“O poeta, em suma, cria, através da força analogante das imagens e dos símbolos, uma área de experiência imaginativa comum, onde os indivíduos e mesmo as épocas podem se encontrar, vencendo no imaginário as barreiras que separam fisicamente suas respectivas vivências reais. Assim fazendo, ele não apenas se comunica, mas intercomunica os outros homens. Daí a missão curativa, mágica e apaziguadora, que faz da poesia um dos pilares em que se assenta a possibilidade mesma da civilização: ela liberta os homens da noite animal, do terror primitivo que isola e paralisa. Ela reúne os membros da tribo em torno do fogo aconchegante e os faz participar de um universo comum que transcende as barreiras dos corpos e do tempo. Ela apazigua, reanima e torna possível, aos que eram animais assustados, pensar e agir.”

P.S.: Com este texto chegamos ao fim desta série de ensaios sobre literatura. Por favor, não me perguntem pelas referências que esqueci.

 

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