Que é que você quer com a literatura? (Parte II)
Segundo de uma série de textos que busca mostrar que as personagens da literatura expressam mais que um mero devaneio: são modelos de vidas possíveis.
O escritor cubano Guillermo Cabrera Infante em seu Uma história do conto traça um amplo percurso do gênero literário mais antigo e versátil, que tem início com as primeiras epopeias, passa pelas “Mil e Uma Noites” e, no século XIX, por autores como Machado de Assis e Tchecov, até chegar, no século XX, a Guimarães Rosa e Borges. Logo no início do texto diz ele que “o conto é tão antigo quanto o homem”. Essa afirmação, muito mais que apelo poético, traz consigo algo de profundo e verdadeiro. Uma antiga máxima pitagórica dizia que os semelhantes só podem ser compreendidos pelos semelhantes; de fato: se a alma humana não fosse composta das mesmas potências que as das personagens da literatura, de modo nenhum poderia compreendê-las.
Quem nunca esbarrou com um Lara Ribas por aí, sujeito que acha que, por ter inclinações à vida intelectual, não tem obrigações com o sustento da família? Quem não conheceu algum pobre diabo que tenha casado com alguma Emma Bovary, esposa que vive de aventuras amorosas fora do matrimônio? Quem não já gastou quinze meses e onze contos de réis com alguma Marcela, mulher bonita e interesseira, personagem de Machado de Assis? Quem não consegue imaginar-se nos braços de Saraminda fazendo todas as suas vontades e cedendo às suas exigências malucas — “me beija, Bonfim…”? Ou ainda, quem não reconhece em Ivan Ilitch, personagem de Tolstoi, um sujeito infeliz, frustrado e totalmente dominado por suas circunstâncias, incapaz de controlá-las? Ou em Heitor, príncipe de Tróia, um arquétipo de herói, viril, corajoso e justo, ainda que inalcançável para muitos?
Todas essas personagens são familiares por serem universais, por representarem não apenas gregos, russos e brasileiros, mas o homem. A alma do homem, marcada pela semelhança com todas as coisas, é todas as coisas, não integral, mas virtualmente, ou seja, o leitor não apenas se identifica com as personagens, mas é virtualmente todas as personagens da literatura, pois as contém potencialmente. Aqui se entende que a mente possui a forma, no sentido aristotélico, de todas as personagens da literatura, mas não as próprias personagens, obviamente. Essas formas estão em potência em cada alma humana. Compreender isso é compreender que as personagens da literatura não são medíocres, confundidas com quaisquer outras pessoas conhecidas, um bando de Zé das Quintas, sem personalidade ou originalidade.
No clássico Meditações do Quixote, de José Ortega y Gasset, há trechos magníficos sobre a individualidade das personagens da literatura clássica. Às vezes, por criarmos um raciocínio baseado numa interpretação exagerada do fato de que elas são “modelos de vidas possíveis”, acabamos por ignorar o fato de que são também inconfundíveis; de que têm algo que as torna únicas, incomparáveis e, portanto, nem um pouco medíocres.
Nas palavras de Ortega:
“As figuras épicas não são representantes de tipos, e sim criaturas únicas. Existiu um só Aquiles e só uma Helena; houve só uma guerra à margem do Escamadro. Se na distraída mulher de Menelau acreditássemos ver uma moça qualquer, solicitada por amores inimigos, Homero teria fracassado. Porque sua missão era muito circunscrita — não livre como a de Ghiberti ou Flaubert –, ele há de nos fazer ver ESTA Helena e ESTE Aquiles [ênfase minha], os quais porventura não se parecem com os humanos que costumamos encontrar pela rua (Meditações do Quixote, pág. 118)”.
O ser “criaturas únicas” é o que podemos chamar de autenticidade. É o que faz com que as personagens sobrevivam muito tempo depois da morte de seu criador e mesmo centenas de anos após o fim da civilização que lhes criou. Goethe compreendia perfeitamente essa verdade quando escreveu que “O efêmero reluz, seu brilho é passageiro. O autêntico perdura, eterno, verdadeiro”. Citando George Steiner: “A vida do leitor mede-se em horas; a do livro, em milênios”. Não deixa de ser curioso o fato de que o meio de expressão mais frágil, palavras escritas num papel, sobrevivem às eras. Conta-se que Flaubert, em seu leito de morte, lamentou o fato de estar morrendo como um cachorro de rua enquanto a “prostituta” Emma Bovary, fruto de sua pena, continuaria a viver.
Em suma, literatura é bem mais que passatempo ou distração; não se trata de um mundo radicalmente diferente do nosso com vidas radicalmente diferentes da nossa; é, antes, um mundo possível com vidas que não são as nossas mas que poderiam ter sido. Situações que poderíamos ter passado, decisões que poderíamos ter tomado e erros que poderíamos ter cometido. São essas situações, reais ou possíveis, que formam nosso imaginário e moldam nosso caráter. Ler é, antes de tudo, estabelecer uma relação de reciprocidade para com o livro. É estar preparado para um “intercurso”, como diria Geoffrey Hill. O bom leitor dialoga com o livro, e em todo diálogo existe uma relação de troca, de recebermos, mas também de ofertarmos. Não por acaso, Platão optou por expressar sua filosofia em forma de diálogos.
Dar e receber, numa relação dialética de onde se pode parir as ideias, é a base da maiêutica socrática. O bom livro jamais deixará seu leitor passivo, pois a leitura bem feita é uma via de mão dupla: o leitor lê o livro ao mesmo tempo que é lido por ele. Quem não estiver preparado para retirar de um livro consequências reais para sua vida, não deveria ler um clássico.
Continuaremos na parte III.
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