(Divulgação)

COLUNA

Prof Michael Amorim
Michael Amorim é professor de filosofia, conferencista, podcaster pai e marido.
Profº Michael Amorim

Que é que você quer com a literatura? (Parte I)

Primeiro de uma série de textos que busca mostrar que as personagens da literatura expressam mais que um mero devaneio: são modelos de vidas possíveis.

Profº Michael Amorim

Uma das maiores e mais perniciosas mentiras que já ouvi sendo divulgada entre os ditos leitores é a de que um livro é uma viagem, uma fuga do mundo em torno, que a leitura serve para nos desligar da realidade, que nos fecha em nosso pensamento ou coisas semelhantes. Mas isso, é claro, é apenas mais um traço da personalidade do que pode-se chamar de leitor pop, aquele sujeito que cheira livros novos e adora exibir seus exemplares de Harry Potter. Não há nada de mais falso do que dizer que a leitura é uma forma de negar a ordem externa refugiando-se na ordem mental.

Indubitavelmente essas falsas noções do que é ser um leitor leva muitos ao cárcere auto imposto, a renegar a vida para serem “homens de livros”; não sabendo que as magníficas expressões literárias são frutos de dramas humanos, saídos da pena de quem soube melhor retratar as emoções humanas justamente por encarar o mundo em vez de fugir dele. Dizia Otto Maria Carpeaux sobre José Lins do Rêgo:

Ele é mais um homem da terra que dos livros, é homem da comida boa e farta, das meninas bonitas, do futebol, e do povo […] A obra de José Lins do Rêgo é mais, muito mais do que um documento sociológico; é qualquer coisa de vivo, porque o seu criador lhe deu o próprio sangue, encheu-a dos seus gracejos e tristezas, risos e lágrimas, conversas, doenças, barulhos, disparates, e da sua grande sabedoria literária. Deu-lhe o hábito da vida.

Num texto de Lins do Rêgo — retirado da Breve notícia-vida de José Lins do Rêgo, texto de Wilson Lousada, publicado na 11° Edição de Fogo Morto, pela editora José Olympio — sobre si próprio, onde ele diz, categoricamente: “Afinal de contas, sou um homem como os outros. E que Deus queira que assim continue” 

Não devemos ir às obras de ficção para sair deste mundo, pelo contrário, devemos ler para recuperar o elo com a realidade, outrora perdido, para estarmos cada vez mais com os pés firmes no chão (embora com a cabeça nas nuvens) e conscientes da situação em torno, cientes de nossas circunstâncias, para usar um termo muito caro à Ortega y Gasset, filósofo espanhol. Hugo de São Vitor, no clássico medieval Didascalicon, dizia que devemos usar a leitura para integrar-nos à Ordem. Existe uma ordem natural e cósmica, externa ao indivíduo, que deve ser absorvida pelo aluno. Não se trata de sair do mundo, mas, antes, de adentrar nele. Desconfiar do mundo que criamos em nossa mente, com nossos pensamentos, e compreender o mundo que se apresenta diante de nossos olhos: tão real quanto a luz do sol ou o calor do fogo que vêm de fora para aquecer nossos corpos e iluminar as trevas de nossa ignorância. Northrop Frye, crítico literário canadense, nos lembra, citando Wallace Stevens, que o motivo da metáfora é um desejo de associar, e por fim de identificar, a mente humana com o que ocorre fora dela. Fora, não dentro. Em seu clássico A Vida Intelectual, A.D. Sertillanges escreve que “A riqueza infinita do real tem também muito a nos instruir; é preciso frequentá-la com espírito contemplativo, porém não desertá-la”.

As personagens da literatura expressam muito mais que um mero devaneio: são modelos de vidas possíveis inspiradas em situações verossímeis. Modelos que, ao serem internalizados pelo leitor, servem de bússola ou guia durante a epopeia de sua vida. De modo que, ao esquecer de quem nós somos, podemos encontrar nos clássicos um espelho empoeirado no qual, ao passarmos a mão, reconhecemos o reflexo distorcido e abandonado que costumávamos chamar de “eu”. Eis aí o arcabouço de toda a literatura: a perda e a reconquista da identidade. O poeta, se não tem por função retratar coisas reais, tampouco tem a ocupação de retratar coisas irreais. É função do historiador fazer lembrar dos fatos passados, ocorridos no mundo real, e função dos oráculos e profetas alertar-nos do futuro, do que ainda vai acontecer. O dever do poeta, por outro lado, é retratar aquilo que se dá sempre ou, para usar um termo aristotélico, o universal. Não vamos a Macbeth como quem está empreendendo um estudo sobre a Escócia, mas para conhecer as sutilezas, temores e complexidades de um homem que conquista um reino às custas de sua alma. Foi exatamente isso que George Steiner quis dizer quando afirmou, em seu maravilhoso ensaio O Leitor Incomum, que “O tempo passa, mas o livro permanece”. Uma verdade já declarada por Goethe: “Ah! Deus! Como a Arte é longa, e tão breve é a vida!”. Esta é a espantosa revelação proclamada por Píndaro: “Quando a cidade que eu canto já não mais existir, quando os homens para quem eu canto já houverem desaparecido no esquecimento, minhas palavras ainda perdurarão”. 

E é isso que torna as obras da literatura tão úteis para o teatro da vida. Há nelas sempre um traço, ou arquétipo, da vida humana semelhante ou correspondente às situações reais à nossa volta. Podemos dizer que o literato transforma os objetos do mundo real em símbolos. Northrop Frye, em seu clássico A Imaginação Educada, acertadamente diz que “O escritor não é um observador, nem um sonhador. A literatura não reflete a vida, mas também não escapa ou se retira dela: engole-a”. O certo é que, sem extrair de um livro a ampla gama de experiências acumuladas da qual surgiram as personagens, é impossível tornar-se um bom leitor. Cercar-se de livros e ignorar que eles nos dão testemunho dos fatos concretos que se desenrolam no mundo em torno é como querer construir uma casa a partir do telhado. É necessário lembrar, cada vez mais, que o caráter se aperfeiçoa na agitação do mundo, como insistia o filósofo Olavo de Carvalho citando Goethe.

Continuaremos na parte II.

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