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COLUNA
Kécio Rabelo
Kécio Rabelo é advogado e presidente da Fundação da Memória Republicana Brasileira.
Kécio Rabelo

O Caderno de Gildo

O sol já se inclinava no horizonte, e o entardecer tingia de cobre as fachadas descascadas dos casarões.

Kécio Rabelo

Gildo desceu a Rua dos Afogados em passo lento. O sol já se inclinava no horizonte, e o entardecer tingia de cobre as fachadas descascadas dos casarões. Havia algo de enigmático naquele nome — Afogados — como se cada pedra do calçamento carregasse histórias de naufrágios humanos, de vidas interrompidas no fluxo do tempo.

Enquanto atravessava a Praça Benedito Leite, reparou no contraste: pessoas apressadas, presas ao agora, e as palmeiras antigas, imóveis, guardando silêncios de décadas. Ergueu o olhar e viu, ao fundo, as torres da Catedral recortando o céu. Altivas, pareciam lembrar que o tempo passa para todos, mas algumas presenças resistem como faróis de eternidade. Logo adiante, os sobrados enormes se erguiam na paisagem. Imponentes, mas sem gente nas janelas, revelavam um vazio que a grandeza e o acúmulo tantas vezes escondem — como se o silêncio fosse mais pesado que as próprias paredes.

Descendo à Rua do Giz, Gildo percebeu que havia se afastado do grupo de colegas. Perder-se, contudo, não lhe trouxe medo; trouxe silêncio. Nesse silêncio, começou a ler os nomes das ruas como quem decifra um mapa secreto. As placas pareciam sobrepor-se, como se cada nome abrisse uma camada da cidade e do próprio tempo.

Na Rua da Estrela, pensou nas escolhas que brilham e desaparecem, tal qual clarões no céu. Quantas vezes seguira luzes passageiras, esquecendo de cultivar aquelas que poderiam durar? No caderno escolar escreveu:
“A estrela guia não é a que mais brilha,
mas a que resiste à noite inteira.”

Na esquina com a Rua da Saúde, deteve-se diante de um sapateiro sentado na calçada. Homem de certa idade, barbas brancas e olhos graúdos, martelava o couro com paciência, indiferente ao corre-corre. Na parede atrás dele, um relógio antigo permanecia parado — talvez há anos — como se o tempo, ali, tivesse se cansado de andar. Ao lado, um calendário de papel amarelado mostrava a imagem de um caminhão. Gildo pensou que certas feridas também ficam suspensas, invisíveis ao corpo. Lembrou das amizades que pediam mais escuta do que conselhos, mais presença do que palavras. Anotou:
“Escutar é oferecer repouso;
olhar nos olhos é curar.”

Seguindo pela Rua da Palma, percebeu que a vida exige firmeza, mas também desapego. As fachadas gastas pareciam confirmar: nem tudo resiste ao tempo, e justamente nesse desgaste mora uma beleza. Registrou:
“A palma que segura também solta.
A escolha está em saber quando.”

E na Rua do Sol, já com a tarde quase se apagando, compreendeu que todo desvio é chance de reencontro. O caminho não é um traçado rígido, mas uma possibilidade de retorno. Escreveu:
“O egoísmo isola,
a empatia reconstrói a estrada.
Caminhar junto é sempre o destino.”

Ao reencontrar o grupo, Gildo nada disse. Guardou no bolso o caderno com anotações apressadas. Sabia, no íntimo, que aquelas páginas não eram lições de escola, mas pequenas bússolas — nascidas das ruas de São Luís, capazes de orientar os labirintos da vida. E enquanto os colegas riam, sem notar sua ausência, ele ainda carregava nos olhos o reflexo do entardecer, como quem entende que a cidade ensina não apenas com suas pedras, mas com suas memórias suspensas no tempo.


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